Título: Brasil resiste à crise política, diz FMI
Autor: Robinson Borges
Fonte: Valor Econômico, 09/09/2005, Finanças, p. C8

Entrevista Economista-chefe do Fundo prevê instabilidade nos mercados quando os juros começarem a subir

A poucos dias da reunião anual do FMI e da divulgação de seu relatório, o World Economic Outlook, o economista-chefe do Fundo, Raghuram Rajan, disse que a crise política brasileira não comprometeu o desempenho da política macroeconômica do país, fato atestado pela serenidade dos mercados. "Creio que isso reflete o fato de que o Brasil deu enormes passos rumo a uma melhoria de suas políticas: o grande superávit fiscal e o superávit comercial", afirmou Rajan ao Valor. O economista, entretanto, demonstra preocupações com o Brasil. No topo delas está o alto ágio existente nos juros sobre crédito privado no país, acima do pago pelo governo. Com spread de 29,5%, o Brasil se transformou numa espécie de "estranho no ninho" no contexto das nações emergentes. No Chile, por exemplo, o spread é de 4% e, no México, de 6,5%. Duas explicações possíveis estão no elevado nível exigido de reservas e na imposição aos bancos para que proporcionem financiamento a diversos setores prioritários. Essa exigência tenderia a aumentar seu custo de fazer negócios, fator importante no alargamento do spread. Há dois anos no FMI, Rajan transformou-se rapidamente numa das vozes mais importantes da seara econômica. Num simpósio do Federal Reserve (Fed), há duas semanas, presidentes dos bancos centrais mais importantes do mundo e economistas de grande influência pararam para ouvi-lo falar sobre a formação de um furacão que pode atingir as finanças globais num futuro próximo. "Há uma pequena, mas crescente possibilidade de termos uma catástrofe no mundo das finanças", confirmou Rajan. O perigo que se avizinha, segundo o economista, é a "bolha" que estaria se formando por causa da desregulamentação do mercado financeiro. O fato favoreceria o surgimento de gestores de investimento ávidos por lucro rápido e de altíssimo risco. O nó da questão estaria na alta probabilidade de o incentivo aos riscos diminuir - por exemplo, quando os juros começam a subir. "Nesse contexto, é muito provável que haja um ajuste muito maior dos preços de ativos. E essa é uma correção para a qual todos deveriam estar atentos", afirmou Rajan. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida por telefone, de Washington. Valor: Qual o impacto da corrupção política na economia do Brasil? Raghuran Rajan: Se considerarmos os mercados, certamente podemos dizer que eles reagiram às notícias sobre o escândalo, mas mantiveram-se relativamente calmos. Creio que isso reflete o fato de que o Brasil deu enormes passos rumo a uma melhoria de suas políticas: o grande superávit fiscal e o superávit comercial. São sinais positivos para o Brasil, indicando que o país conseguiu resistir a uma preocupação que surge da arena política. No passado, as economias de mercados emergentes mostravam-se frágeis, nesse aspecto, de modo que considero isso uma boa notícia, do Brasil. Há um amadurecimento. Valor: O senhor já disse que o país precisa de reformas estruturais para fortalecer a economia. Não há comprometimento da viabilidade das reformas com escândalos? Rajan: Qualquer vulnerabilidade política tem efeitos positivos e negativos sobre reformas. Por um lado, pode haver maior incentivo para implementar reformas. Por outro, pode haver menor capacidade política para articular e promulgar as reformas. Precisamos prestar atenção ao fato de que, até agora, a economia resistiu aos escândalos relativamente bem. Valor: Há tempos a discussão no Brasil é saber por que o país tem a taxa de juros mais alta do mundo. O senhor tem a resposta? Rajan: Precisamos distinguir entre os juros pagos pelo governo e os pagos pelos indivíduos. Sem dúvida, a taxa de juros paga pelo governo em reais é alta, mas, se examinarmos o spread em dólares de passivos brasileiros denominados em dólar, veremos que é similar ao spread em dólares de outros mercados emergentes. Agora, os juros do governo em reais são maiores do que os juros em dólares, o que reflete fatores como a expectativa de inflação. Preocupante é o fato de que existe um spread substancial entre o que o governo paga e o que os indivíduos pagam. Existe um enorme ágio nos juros sobre crédito privado, bem acima do que o governo paga. O Brasil é um estranho no ninho de outros emergentes. Isso porque, segundo um estudo, o país tem spread de 29,5%, ao passo que, por exemplo, no Chile é 4%, no México é 6,5%, de modo que o spread é muito alto no Brasil. Valor: O que está gerando esse spread tão alto? Rajan: São várias possibilidades. Uma delas é o elevado nível exigido de reservas. Outra é que a imposição aos bancos para que proporcionem financiamento a diversos setores prioritários tendem a aumentar seu custo de fazer negócios, e esse é um fator importante no alargamento do spread. Um segundo aspecto que está sendo modificado no Brasil é a legislação de falências. A nova lei tende a melhorar o ambiente, que não permite que os emprestadores cobrem o que lhes é devido, por isso eles não querem oferecer crédito, exceto a juros muito altos. Na mesma linha, as informações sobre os tomadores não é amplamente compartilhada. Alguns bancos têm informações, mas outros, não. E por isso, novamente, fica difícil avaliar os riscos de crédito. Um banco de dados mais abrangente da qualidade de crédito de diversos clientes em potencial promoveria maior competição entre os emprestadores e baixaria os juros. Valor: Os impostos no setor financeiro não são altos? São outro elemento incentivador do ágio? Rajan: Sem dúvida. A diversidade de impostos sobre diferentes tipos de transações tende a ampliar os ágios. Assim, diria que muito do cenário adverso tem a ver com questões que podem ser solucionadas mediante reformas estruturais, inclusive a criação de maior competição no sistema bancário, que também contribuiria para baixar os custos operacionais, reduzindo essas exigências de reservas e reduzindo os impostos sobre transações financeiras, mas também melhorias no sistema falimentar. Se houver um melhor sistema de intercâmbio de informações, seria também positivo. Valor: O senhor declarou recentemente que o mundo está prestes a uma nova bolha da economia. Quais são os riscos?

"Há uma pequena, mas crescente possibilidade de termos uma catástrofe no mundo das finanças"

Rajan: Só sabemos que se trata de bolha depois do fato consumado. Por isso, não diria que temos certeza de que esteja havendo uma bolha. Diria que num ambiente de juros baixos, há um estímulo crescente a assumir riscos, e isso pode deprimir os prêmios de ativos de risco. Isso pode elevar os preços de ativos além do que sugeririam os fundamentos, e esse contexto é, sem dúvida, um grande risco. Valor: O senhor atribui essa crise aos próprios administradores financeiros. Qual é o papel deles? Rajan: As principais mudanças que aponto envolvem o fato de que a estrutura de incentivo para os administradores financeiros - profissionais como administradores de fundos de pensão, de fundos mútuos, de fundos de hedge - parece bastante distinta da estrutura de incentivos de, por exemplo, bancos. Em especial de como os gerentes de bancos se comportavam 30 ou 40 anos atrás. Nessa estrutura de incentivos, há muito mais valor em jogo para os administradores, como resultado da geração de retornos. E, além disso, considerando que os investidores acorrem rapidamente a um fundo quando ele está gerando retornos maravilhosos e mostram-se muito mais lentos em sair quando o fundo vai mal, os administradores de fundos preocupam-se mais em gerar retornos elevados, mas não preocupam-se muito se, em sua operação, também cometem erros terríveis. Esse tipo de sistema de incentivo cria um maior estímulo para que os administradores de investimentos assumam riscos. Valor: Outro agravante para os riscos é o fato de os gerentes de investimentos se concentrarem mais em retornos no curto prazo? Rajan: Eles pensam "vamos gerar retornos no curto prazo e nos preocuparmos um pouco menos com se esses retornos persistirão no longo prazo". Esses dois efeitos, creio, podem ser amplificados pelo fato de que uma maneira de gerar retornos é assumir riscos que os investidores não sabem que o administrador está assumindo. Valor: O senhor atribui esse apetite de riscos ao aumento do ambiente competitivo? Rajan: Se você fosse um gerente de fundo no mercado financeiro americano no início dos anos 90, a premissa era de que deveria investir em ativos sem riscos - ou seja, ativos emitidos pelo governo americano, bônus do Tesouro etc etc. Eles são muito seguros, mas também geram retornos muito baixos porque são investimentos seguros e monótonos. Então, o que fizeram os gerentes de fundos de renda fixa para ser mais atraentes do que os competidores? Eles passaram a assumir mais riscos. Por exemplo, eles passaram a comprar e vender instrumentos financeiros exóticos denominados derivativos baseados em juros, com o objetivo de incrementar os retornos que eles gerariam com suas carteiras de ativos entediantes, mas seguras, do governo dos EUA. Ora, esses derivativos produziam uma renda adicional contínua se os juros permanecessem baixos, mas gerariam enormes prejuízos se os juros subissem substancialmente. Valor: Como a política monetária pode intervir nesse processo para evitar a bolha? Rajan: Por um lado, penso que, ao formular a política monetária, precisamos ter consciência dos efeitos que ela poderá ter no comportamento de risco dos agentes. Quando temos juros relativamente baixos em países industrializados, a tolerância a risco cresce, e são financiados projetos de investimento mais arriscados (mais dinheiro aflui para mercados emergentes). Mas à medida que os juros em países industrializados sobem, aquele afluxo diminui. Assim, da perspectiva de um país de mercado emergente, sem dúvida é preciso ter consciência de que, a juros persistentemente muito baixos em países industrializados, esse tipo de comportamento pode se intensificar, assegurando abundante disponibilidade de financiamento. Mas a situação pode se inverter, quando sobem os juros nos países industrializados. Valor: O senhor acredita que, caso a situação se agrave, em termos de mercados financeiros, um aumento dos juros seria uma solução? Rajan: Meu ponto de vista não é tanto no sentido de mexer nos juros, mas em permanecer muito, muito vigilante, sobre os efeitos de juros baixos sobre a disposição dos agentes para assumir riscos. E sobre a possibilidade de gerar expansão acelerada nos preços de ativos, seguida das inevitáveis contrações bruscas, quando esses juros são mantidos muito baixos. Isso significa empregar os outros instrumentos de que dispõem os supervisores, por exemplo, medidas preventivas, tais como ditar aos bancos que obtenham garantias adequadas etc. Quando fazem esses tipos de empréstimos, de maneira a assegurar que não haja uma bolha no mercado imobiliário ou algum outro tipo de movimento de preços. Para um país industrializado, a recomendação é de atenção para uma supervisão conservadora em período de juro baixo. Valor: O senhor propõe maior regulamentação? Rajan: Pelo menos um ponto importante que desejo colocar é que quando falamos sobre regulamentar esses agilíssimos fundos de investimentos e seus administradores, podemos estar nos concentrando excessivamente em fatores como divulgação, transparência e adequação de capital. Essas ferramentas podem não ser adequadas à tarefa. Divulgação, transparência e adequação de capital são maneiras pelas quais o "pessoal de fora" pode tentar influenciar o "pessoal de dentro". Minha percepção, porém, é de que, nesse agilíssimo mundo financeiro, no qual posições de ativos e posições de risco estão mudando o tempo todo, esses tipos de ferramentas, por vezes, podem não produzir em grau suficiente o efeito desejado. Se eu divulgar transparentemente minha posição agora, você não tem a mínima idéia do que poderei fazer dentro de uma hora. Provavelmente, melhor para que os próprios administradores tenham os incentivos apropriados. Valor: Como devem ser os incentivos para os administradores de fundos, de modo que não se chegue a esse cenário? Rajan: Incentivo para investir no longo prazo, em vez de fazê-lo no curtíssimo prazo. Se eles têm os incentivos apropriados para assumir riscos; se os riscos que eles assumem são plenamente evidentes aos investidores e plenamente compreendidos por eles. É nesse tipo de aspectos que precisamos nos concentrar. Outra coisa que sugiro, e isso é particularmente importante para o mercado emergente, é que, em um momento de juros especialmente baixos, a disponibilidade de financiamento do mundo exterior será bastante alta. Mas os mercados emergentes precisam prestar a devida atenção ao fato de que uma parcela substancial disso pode ser de capital volátil, e que eles devem manter-se preparados para o dia em que esse financiamento secar. Valor: Seu livro "Salvando o Capitalismo dos Capitalistas" diz que as instituições são realmente importantes para regulamentar o mercado... Rajan: Creio que a indagação é: "Podem as instituições regular-se a si mesmas"? Será essa a questão? Minha visão é de que os mercados provavelmente necessitam alguma regulamentação, caso esse tipo de estruturas de incentivo existam. Com freqüência, os mercados encontram maneiras de auto-regular-se. Além disso, ao impor alguma regulamentação, é preciso ser bastante cuidadoso, para não desfazer as coisas boas que o mercado esteja fazendo, correto? Lembre-se: nós iniciamos dizendo que há muitas coisas boas que as forças de mercado estão fazendo, e não queremos anular isso. Assim, qualquer regulamentação deve assegurar que as forças de mercado possam continuar agindo, e não deveria obstruir essas forças de mercado. É por isso que estou dizendo que, de meu ponto de vista, a melhor maneira de considerar essa questão é ver como se podem criar melhores incentivos para os participantes do mercado; (trata-se de) dar a eles um incentivo para trabalhar mais visando o longo prazo e, simultaneamente, não reduzir excessivamente seus incentivos a assumir riscos. Assumir riscos não é, em si mesmo, algo intrinsicamente mau. Mau é assumir risco excessivo - ou assumir riscos desconhecidos por seus investidores. Assim, precisamos encontrar maneiras para limitar isso, sem limitar seu incentivo a assumir riscos, que é uma coisa boa, porque permite que todos nós obtenhamos financiamento.