Título: A ação civil pública e o Ministério Público
Autor: Por Hugo Filardi
Fonte: Valor Econômico, 22/06/2005, Legislação & Tributos, p. E2

"Os magistrados devem defender o pleno acesso ao Judiciário no sentido de dar efetividade aos comandos constitucionais abstratos"

A adequação da prestação da tutela jurisdicional aos anseios dos jurisdicionados e a transformação de sua concepção liberal individualista para a dogmática social, visando trazer ao processo a certeza da presença do julgamento justo e credibilidade do Poder Judiciário, em vez de somente privilegiar o litigante melhor representado e com maior poderio sócio-econômico, é uma exigência do Estado democrático de direito. No campo das ações coletivas, o óbice à análise meritória das demandas postas em juízo de maior relevância para este artigo é justamente a legitimação ativa, já que o legislador elegeu na Lei da Ação Civil Pública e no Código de Defesa do Consumidor determinadas pessoas para defesa dos interesses metaindividuais. Dada a natureza dos interesses tutelados pela ação civil pública, a titularidade ativa no processo coletivo foge a regra da congruência entre a relação jurídica de direito material e a relação jurídica de direito processual. Visando a determinação da natureza jurídica da legitimação na ação civil pública, convém destacar que a legitimidade ordinária é justamente a coincidência entre jurisdicionados afetáveis por fato ou ato jurídico e demandantes na defesa de seus interesses, enquanto na legitimidade extraordinária a lei confere a titularidade do direito de ação a um terceiro para defender um interesse alheio. No que concerne à tutela dos interesses difusos e coletivos "stricto senso", compartilhamos da mesma opinião de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery ("Código de Processo Civil Comentado e Legislação Processual Civil Extravagante em Vigor", 5ª Edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2001), que afirmam que "a dicotomia clássica legitimação ordinária-extraordinária só tem cabimento para a explicação fenômenos envolvendo direito individual. Quando a lei legitima alguma entidade a defender o direito não individual (coletivo ou difuso), o legitimado não estará defendendo direito alheio em nome próprio, porque não se pode identificar o titular do direito. Não poderia ser admitida ação judicial proposta pelos prejudicados da poluição, pelos consumidores de energia elétrica, enquanto classe ou grupos de pessoas. A legitimidade para a defesa dos direitos difusos e coletivos em juízo não é extraordinária (substituição processual), mas sim legitimação autônoma para a condução do processo: a lei elegeu alguém para a defesa de direitos porque seus titulares não podem individualmente fazê-lo." Assim, resta claro que não concordamos com a posição doutrinária de que a natureza jurídica da legitimação na ação civil pública seria ordinária, sob o argumento de que o interesse em defesa seria público e com a tese de legitimidade extraordinária sustentada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Como já dito, a legitimidade não pode ser considerada ordinária, pois os legitimados não são titulares da relação jurídica de direito material, e muito menos extraordinária, pelo simples fato de ser impossível a identificação dos titulares dos interesses tutelados.

O texto constitucional não trouxe expressamente a legitimação do Ministério Público para a defesa de interesses homogêneos

Apenas no que tange aos interesses individuais homogêneos, considerados apenas socialmente coletivos, vislumbro a hipótese de legitimidade extraordinária concorrente ou disjuntiva, pois tanto o titular do direito material quanto o legitimado extraordinariamente estão autorizados a defender o interesse em juízo. Somente na tutela desta espécie de interesse o posicionamento do Supremo Tribunal Federal deve prosperar, já que admitir substituição processual sem conseguir diagnosticar os substituídos nos parece o mesmo que comprar um presente sem saber a quem destiná-lo. As funções do Ministério Público foram estabelecidas pela Constituição Federal nos artigos 127 a 130, onde resta evidente sua incumbência da propositura de ação civil pública na defesa do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. O texto constitucional não contemplou expressamente a legitimação do Ministério Público para a defesa de interesses individuais homogêneos, muito embora tendamos, com pequenas ressalvas, a incluí-los no seu campo de atuação. Até mesmo porque o legislador constitucional originário não poderia explicitar um interesse que ainda não havia sido delimitado pela doutrina. Então, entendemos que as interpretações lógico-extensivas admitindo a tutela de interesses individuais homogêneos pelo Ministério Público são plenamente favoráveis à eficácia do princípio constitucional de livre acesso ao Judiciário e colimam para o fim primordial do Estado democrático de direito que é a propagação da paz social através da distribuição de justiça. Consideramos que a não inclusão do termo jurídico mencionado se deu em função de sua precária precisão terminológica que poderia acarretar numa ilegítima intervenção do Ministério Público em interesses que não os de relevância social. Por se tratarem de interesses apenas socialmente coletivos, a defesa dos interesses individuais homogêneos visa transformar indivíduos em jurisdicionados e impedir que a diferença no êxito de demandas de mesma matéria motivada contribua para o descrédito do Judiciário perante a sociedade civil. Definitivamente, os magistrados devem deixar de apegos a técnicas processuais de pouco utilidade prática e defender irrestritamente o pleno acesso ao Judiciário no sentido de conferir efetividade aos comandos constitucionais abstratos.