Título: As renúncias fiscais e a qualidade do gasto público
Autor: José Tavares de Araujo Jr
Fonte: Valor Econômico, 16/06/2005, Opinião, p. A14

Um indicador inequívoco da qualidade do gasto público em qualquer país é o grau de transparência de sua política de subsídios. Este é um aspecto que permaneceu inalterado no Brasil nos últimos 15 anos, não obstante a amplitude das reformas econômicas ocorridas nesse período. As razões do imobilismo nesta área são conhecidas, mas o momento atual é particularmente oportuno para enfrentá-las, e a iniciativa depende apenas das autoridades econômicas. Bastaria que elas divulgassem no site do Ministério da Fazenda um relatório sobre a evolução do Orçamento de Subsídios e Renúncias Fiscais da União nos últimos anos, e declarassem a intenção de rever a extensa lista de privilégios ali embutidos. Tal como ocorre rotineiramente na maioria das democracias contemporâneas, mas não no Brasil, o relatório deveria descrever didaticamente o significado de cada rubrica, sua data de criação (já que algumas delas existem há mais de 50 anos), os valores anuais, os beneficiários explícitos e indiretos, e os objetivos que aquele subsídio visava atender quando foi criado. Além de agregar os montantes por ramos de atividade, regiões do país e tipos de finalidade (ciência e tecnologia, desenvolvimento industrial, programas sociais, cultura, universalização do acesso a serviços públicos, agricultura etc.), o documento deveria indicar também a metodologia que seria usada para avaliar se interessa ao país manter, reduzir, abolir ou, eventualmente, ampliar cada ítem daquele orçamento. Como a lista é muito heterogênea, seria conveniente estabelecer um cronograma para debatê-la. A ordem mais lógica seria examinar inicialmente os tópicos de maior impacto sobre a taxa de crescimento da economia. Quatro candidatos notórios para este primeiro grupo, por ordem de antiguidade, seriam o Fundo da Marinha Mercante, a Zona Franca de Manaus e os incentivos fiscais às indústrias de informática e automobilística. O primeiro foi estabelecido em 1958; o segundo, em meados dos anos 70; o terceiro, no início da década de 80; e o quarto, em 1995, quando o governo FHC resolveu conceder às montadoras de veículos um conjunto de benefícios mais generoso do que aquele executado pelo Plano de Metas, na segunda metade dos anos 50. Apesar da longevidade destas quatro fontes de gasto público, jamais os contribuintes brasileiros receberam dos sucessivos governos qualquer explanação contábil sobre a racionalidade desses dispêndios. Algumas perguntas que em outros países os governos são obrigados a responder periodicamente à população são: 1) se esses programas estão cumprindo seus objetivos originais; 2) se os subsídios são realmente indispensáveis; 3) se as demais ações governamentais são coerentes com estes programas; 4) nas situações conflitantes, que medidas estão sendo tomadas para superá-las; 5) se esses programas geram desequilíbrios em outros segmentos da economia; 6) que providências estão sendo tomadas a este respeito; e 7) qual é o impacto desses programas sobre a carga fiscal do país.

Os governos brasileiros jamais expuseram aos seus contribuintes as razões e a racionalidade dos incentivos fiscais

Para se ter uma idéia do atraso brasileiro nesta matéria, basta uma rápida consulta à internet. Nos Estados Unidos, por exemplo, o site do Government Accountability Office ( www.gao.gov ) contém relatórios que descrevem não só os subsídios e isenções fiscais em vigor no país, mas também todas as demais modalidades de gasto público, classificados segundo 28 tipos de assunto e por órgão responsável pelo dispêndio. Na União Européia, a comissão publica relatórios anuais sobre as chamadas "Ajudas Estatais" concedidas pelos países membros ( http://europa.eu.int ). O principal propósito destes relatórios é avaliar os impactos dos subsídios sobre as condições de concorrência no interior do Mercado Comum Europeu. Na Austrália, os trabalhos da Productivity Commission ( www.pc.gov.au ) são reconhecidos internacionalmente pela habilidade de combinar rigor analítico com simplicidade de redação. Em nenhum desses países o regime de subsídios é perfeito ou imune a controvérsias, como bem ilustram as políticas agrícolas dos Estados Unidos e da União Européia. Contudo, os requisitos de transparência ali estabelecidos produziram três resultados inquestionáveis nas últimas décadas. Em primeiro lugar, os custos domésticos das distorções ainda existentes são de amplo conhecimento público, assim como os obstáculos à sua eliminação. Em segundo, a maioria dos subsídios redundantes foi eliminada. Desta maneira, caiu em desuso a antiga prática governamental de criar programas de incentivos que seriam posteriormente anulados através de outros instrumentos de política econômica. Em terceiro lugar, os subsídios que visam elevar a produtividade da economia ou reduzir as disparidades sociais tornaram-se mais efetivos. Uma das áreas mais beneficiadas pelos resultados acima foi a de ciência e tecnologia. Como se sabe, os gastos públicos dos países industrializados em pesquisa e desenvolvimento sempre foram elevados. A relevância desses investimentos para sustentar a taxa de crescimento de longo prazo da economia jamais foi contestada, desde que dois requisitos básicos estivessem assegurados: a continuidade do apoio governamental e os investimentos complementares por parte do setor privado. Ambos os requisitos são prejudicados quando o sistema nacional de incentivos é pouco transparente e, portanto, oculta os eventuais conflitos entre as metas da política tecnológica e outras prioridades do governo, conforme atesta, lamentavelmente, a experiência brasileira dos últimos 30 anos. Se o governo decidisse rever a política de subsídios nos termos sugeridos, provavelmente enfrentaria um espectro de resistências políticas sem precedentes, dada a multiplicidade de interesses atendidos pelo sistema atual. Entretanto, esta atitude traria duas recompensas valiosas. Por um lado, teria promovido uma reforma nos instrumentos de política econômica cuja magnitude seria comparável ao Plano Real, à abertura da economia e às mudanças institucionais introduzidas no governo FHC. Por outro lado, fortaleceria a democracia, ao melhorar a qualidade do gasto público no país.