Título: O Cade e o veto à aquisição da Garoto pela Nestlé
Autor: Carlos Alberto Bello
Fonte: Valor Econômico, 07/06/2005, Opinião, p. A10

Autonomia do órgão não necessariamente serve ao interesse público

Virtualmente ausente do noticiário desde 2001 (caso Ambev), o Cade volta a ser objeto de polêmica por vetar a aquisição da Garoto pela Nestlé. O relatório do conselheiro Thompson de Andrade (acessível em www.cade.gov.br) examina cuidadosamente várias alegações feitas pela Nestlé e pela Kraft (dona da Lacta, impugnante da operação). Ressalta que o elevado grau de concentração resultante (os dois grupos dominavam 91,5% do mercado de chocolates em 2001, liderado pela Nestlé/Garoto com 58,4%) tende a se reproduzir devido às elevadas barreiras a uma entrada expressiva (para disputar grandes fatias do mercado), especialmente os gastos para fixar a marca junto aos consumidores e para garantir presença nas prateleiras do comércio. Ilustra essa situação mostrando que grandes empresas multinacionais (como Mars, Hershey´s, Parmalat e Arcor) atuam no Brasil desde 1996, mas juntas detinham apenas 5% do mercado em 2001. A Nestlé alegou que não haveria aumento dos preços dos chocolates, uma vez que os ganhos de produtividade decorrentes da aquisição reduziriam os custos variáveis em 13% e acarretariam redução de preços, visando aumento de suas fatias de mercado. Afirmou que os lucros seriam menores no caso de aumento dos preços pois, supondo que os concorrentes não reajustassem seus preços, a Nestlé teria grande redução nas quantidades vendidas. O relator discordou, avaliando que os ganhos de produtividade foram superestimados, logo a estratégia mais lucrativa implicaria maiores preços. Cabe ressaltar que o relator se apoiou na questionável hipótese de que, caso a redução de custos fosse expressiva, a Nestlé poderia reduzir os preços e aumentar sua fatia de mercado a ponto de elevar os lucros, descartando assim que os concorrentes também reduzissem os preços, mesmo que à custa de queda da rentabilidade de curto prazo, por temerem perdas de parcelas de mercado ainda mais prejudiciais aos lucros no médio e longo prazo. Por outro lado, a Nestlé poderia elevar os preços de forma lucrativa, na hipótese plausível de que a Kraft a seguiria por acreditar que a redução dos preços não lhe faria ganhar uma parcela de mercado suficiente para obter maior lucro. Como os demais concorrentes dividiam apenas 8,5% do mercado em 2001 e não possuem marcas tão conhecidas, os dois grupos líderes poderiam lucrar com um aumento de preços. Cumpre acrescentar que a manutenção dos preços não significa que a operação deixe de acarretar danos à sociedade. Inexistindo repasse da redução de custos para os preços, os consumidores dificilmente serão beneficiados (não há razão para supor melhoria da qualidade) e o aumento dos lucros das empresas acarreta queda das receitas de outros setores, incluindo as pequenas e médias empresas e a redução dos empregos e dos salários (via desemprego e precarização). Aliás, o fortalecimento do poder de mercado tende a inibir a expansão da capacidade produtiva, já que a aquisição provavelmente aumentou a capacidade ociosa do grupo Nestlé.

Garoto tem maior possibilidade de crescer e gerar empregos se for vendida para outro grupo econômico sólido

Membros do governo, parlamentares e sindicatos capixabas temem que a Garoto venha a ter grandes dificuldades, se for desfeita sua aquisição pela Nestlé. No entanto, parece que eles não se deram conta que, se a empresa for vendida para outro grupo econômico sólido (estrangeiros já se interessaram), a possibilidade de ela crescer e gerar mais empregos é muito maior do que na hipótese de permanecer sob controle da Nestlé, já que um outro grupo terá motivação para procurar tomar parcelas de mercado do grupo suíço, como a Garoto vinha fazendo nos últimos anos. Por outro lado, a Nestlé poderá diminuir as operações da Garoto - se avaliar que certas marcas da Nestlé são mais lucrativas - ou transferi-las para outras unidades, se resolver otimizar a utilização da capacidade produtiva de plantas localizadas em outros estados. Ambas as possibilidades são perfeitamente racionais (resultam em ganhos de produtividade) e são meras expressões da busca pela maximização de lucros. Desta forma, nota-se como há amplo desconhecimento sobre os prováveis efeitos de decisões do Cade. Por fim, cabe salientar que os mais importantes vetos à concentração do poder econômico, decisões voltadas ao interesse público, foram revertidos no âmbito do próprio Cade entre 1994 e 1998, em função de fortes pressões de membros do governo FHC e de segmentos empresariais. O grupo Gerdau - com apoio de políticos gaúchos - conseguiu que o ministro da Justiça, Nelson Jobim, suspendesse o veto no caso Gerdau/Pains em 1996; depois o Cade aprovou a operação, exigindo modificações que pouco afetaram o poder de mercado da Gerdau. Nas associações entre cervejarias (Antárctica/Budweiser e Brahma/Miller), o Cade também vetou as transações, mas depois suspendeu o veto de forma pouco fundamentada (Bello, Carlos Alberto, 2005, "Autonomia frustrada: o Cade e o poder econômico". São Paulo: Boitempo). Cabe saudar que tal reversão não tenha ocorrido no caso Nestlé/Garoto (único veto importante desde 1998), embora o Cade esteja envolvido em questões jurídicas que permitiram à Nestlé recorrer à Justiça Federal. A autonomia de um Cade voltado ao interesse público somente poderá ser efetiva se vários segmentos sociais se mobilizarem para lutar por uma política antitruste atuante, o que poderia ocorrer se acreditassem que ela pode buscar objetivos muito mais abrangentes do que apenas impedir efeitos prejudiciais em certos setores econômicos (Bello, 2005). Afastada esta perspectiva, um Cade com maior autonomia tenderá a levar ao estreitamento dos vínculos entre os conselheiros e o empresariado. Aqueles que exerceram autonomia noutra direção saíram - Thompson de Andrade não foi reconduzido e Cleveland Prates desistiu de sua recondução, pois ela estava parada há seis meses no Senado, talvez refletindo insatisfação quanto à sua postura no caso Nestlé/Garoto.