Título: A América desistiu do sonho americano?
Autor: The Economist
Fonte: Valor Econômico, 21/03/2005, Especial, p. A14

O "sinal", como é chamado pelos agentes da Polícia de Fronteira, está em todo lugar: trilhas estreitas deixadas por imigrantes ilegais, dia após dia, pelos perigosos desfiladeiros do deserto do Arizona. Alguns vão conseguir, como o homem extenuado e queimado de sol que cambaleia em direção à bica d'água na área de descanso I-8, primeira parada antes que as gangues de latinos os transportem para o norte, rumo à segurança. Outros não conseguirão. Mas muitos continuarão tentando. Não importa o tamanho dos obstáculos, os EUA, a América, continuam sendo a terra das oportunidades. Oportunidades para quem? "Por tradição e convicção, nosso país é uma sociedade hospitaleira", disse o presidente George Bush em janeiro de 2004, ao propor a lei do Trabalhador Convidado, para legalizar a presença de milhões de estrangeiros ilegais. Mais de um ano depois, a proposta de Bush está longe de ter sucesso. Rádios conservadoras fazem campanha contra a indisposição do governo em deportar imigrantes ilegais e fechar as "fronteiras rompidas". Republicanos de olho nas eleições de 2006 desafiam Bush. Em fevereiro, a Câmara, dominada pelos republicanos, votou decisivamente, apesar dos protestos de governadores estaduais e chefes de polícia, por uma "real ID" (identidade real). O temor era que imigrantes ilegais conseguissem carteiras de motorista que os "legalizassem". A partir de abril, grupos de vigilantes passarão a patrulhar o deserto do Arizona para "proteger nosso país de uma invasão que já dura 40 anos e que vem ocorrendo na fronteira com o México". Em resumo, a hospitalidade dos EUA com seus imigrantes tem limites. Historiadores dirão que isso ocorre há muito tempo: prova é a antipatia com sucessivas ondas de imigrantes, de irlandeses e alemães, no século XIX, a italianos, poloneses e judeus no século XX. Uma diferença agora é que, desde setembro de 2001 o risco de terrorismo despertou novas preocupações com a segurança nas fronteiras. Apesar de toda a segurança nos aeroportos, vastas áreas das fronteiras dos EUA podem ser cruzadas à vontade, sempre sob o risco de morte por sede e exaustão. Uma segunda diferença é que, embora os imigrantes legais cheguem de todas as partes do mundo, a imigração clandestina é maciçamente de origem latino-americana, especialmente do México. O Serviço de Imigração e Naturalização (INS), que agora faz parte do Departamento de Segurança Interna, avaliou cinco anos atrás que quase 70% de todos os residentes ilegais nos EUA eram mexicanos. Isso induz muitos americanos a uma pausa para um pensamento xenófobo. Como diz Samuel Huntington, o cientista político de Harvard., "não existe o sonho americano. Existe apenas o sonho americano criado pela sociedade anglo-protestante. Os mexicanos-americanos só vão compartilhar desse sonho e dessa sociedade se sonharem em inglês". A tese de Huntington é que quanto maior o número de imigrantes latinos, menor a chance de assimilá-los. Tal afirmação provoca muita raiva. Mas muitas outras coisas também o fazem num debate que carrega o espectro da defesa libertária das fronteiras abertas contra o instinto isolacionista. Um consenso, porém, é que o atual sistema da imigração legal não funciona. A razão é simples: a entrega de vistos já não dá conta da demanda. A lei propicia 675 mil vistos por ano para residentes permanentes nos EUA: desses, 480 mil estão disponíveis para familiares de cidadãos americanos e residentes legais já no país; outros 140 mil estão baseados no emprego. E refugiados podem obter visto permanente por razões humanitárias (o teto para o ano de 2004 foi de 70 mil) e há 50 mil vistos de "diversidade", disponíveis por sorteio para cidadãos de países que enviaram menos de 50 mil imigrantes nos últimos cinco anos. Na prática, o número de 675 mil é um piso e não um teto, porque não há limite aos vistos permanentes para o núcleo familiar de um residente legal. O resultado é que desde 1990 o número total de imigrantes que conseguem visto de residência fica em média em 962 mil ao ano. Ainda assim, a oferta não atende à demanda. O Birô do Censo estimou que, em 2003, a população dos EUA nascida fora do país era de 33,5 milhões, cerca de 12% da população total. Desses, 53% eram de latino-americanos. Quantos dos 33,5 milhões são residentes ilegais é uma questão de adivinhação estatística, ou talvez, só de preconceito. A maior parte das autoridades estimam o número em algo entre 8 milhões e 12 milhões, mas alguns, especialmente os grupos que exigem o reparo das fronteiras rompidas, dizem que o número é muito maior. O desacordo sobre os números também atinge o crescimento anual da imigração ilegal. Em setembro, a revista "Time" anunciou que "entrarão no país este ano 3 milhões de estrangeiros ilegais". Ela chegou a este número avaliando que, para cada imigrante ilegal detido, "pelo menos três conseguem entrar com sucesso no país". Mas os imigrantes pegos pela Patrulha da Fronteira freqüentemente são reincidentes. Eles são devolvidos ao México e em seguida fazem nova tentativa. Em outras palavras, um milhão de prisões não é igual a um milhão de pessoas diferentes. Qual seria um número mais plausível para o crescimento da imigração ilegal? O INS calcula que cerca de 40% dos residentes sem documentos entraram nos EUA legalmente, mas ficaram após o vencimento de seus vistos. Ao mesmo tempo, muitos residentes ilegais conseguiram se legalizar. Além das anistias oficiais (cerca de 2,7 milhões foram beneficiados por uma anistia irrestrita em 1986, e outros 3 milhões por seis leis aprovadas pelo Congresso entre 1994 e 2000), pelo menos 100 mil "ilegais" legalizam sua situação a cada ano, seja "ajustando sua posição social" (ajuda se você se casar com um americano) ou deixando o país e retornando com um visto.

É perfeitamente possível acreditar que cerca de 1 milhão de imigrantes entrarão ilegalmente nos EUA neste ano"

Os números são um exercício de adivinhação, mas é perfeitamente possível acreditar que cerca de 1 milhão de imigrantes entrarão ilegalmente nos EUA este ano. Se os números são uma incógnita, o destino dessas pessoas não. Muitas vão se unir ao 1 milhão ou mais de imigrantes ilegais (de uma força de trabalho agrícola total de 1,6 milhão) que trabalham em plantações, especialmente na Califórnia. Outros vão se juntar a comunidades de imigrantes em grandes cidades. Segundo o censo de 2000, Los Angeles tem uma população de imigrantes de pelo menos 1,5 milhão de pessoas; em Nova York, há 2,9 milhões; em Chicago, 629 mil; em Houston, 516 mil. Na verdade, a atração vai além dos destinos "tradicionais": um quinto da população do condado Clark, no Estado de Idaho, é estrangeira. Pesquisa após pesquisa, americanos de todas as raças vêm dizendo ao longo da última década que querem menos imigração, legal e ilegal. Os argumentos são as objeções comuns: os recém-chegados tomam empregos de americanos; são um fardo para os serviços pagos pelos contribuintes; e cometem crimes (embora a maioria dos imigrantes ilegais siga rigorosamente a lei para evitar a polícia). Em 1994, o eleitorado da Califórnia aprovou, com 59% dos votos, uma proposta para tentar negar acesso a saúde, educação e benefícios sociais a estrangeiros ilegais (mais tarde, um juiz declarou inconstitucionais a maior parte das medidas). Em novembro de 2004, o Arizona aprovou, com 56% dos votos, proposta que não só nega aos imigrantes ilegais a assistência do Estado, como também exige que funcionários públicos - sob pena de multa e prisão - verifiquem a condição legal de todas as pessoas que derem entrada a pedidos de benefícios do Estado. Cave um pouco mais fundo, porém, e a opinião popular se torna menos definida. Huntington gosta de traçar as raízes da América aos "colonizadores", em vez dos "imigrantes", mas a maioria dos americanos segue a visão de Franklin Roosevelt de que "todos nós descendemos dos imigrantes". A conseqüência é um tipo de ambivalência generalizada. Numa pesquisa do jornal "The Washington Post" em janeiro, 61% disseram que os imigrantes ilegais deveriam poder manter seus empregos e solicitar sua legalização. Por outro lado, poucos americanos vêem com bons olhos uma maior entrada de imigrantes: o instituto Gallup constatou, em janeiro, que 7% dos americanos querem mais imigração; 39% estão felizes com os níveis atuais; e 52% querem menos. Mas é economicamente plausível ter menos? Seja quais forem as objeções à imigração, os empregadores sabem da dependência que o país tem dos estrangeiros. As empresa de alta tecnologia se beneficiam dos vistos H-1B, criados em 1990 para permitir a entrada de cientistas e outros profissionais capacitados por um período máximo de seis anos. Há um teto anual de 65 mil vistos H-1B, mas durante a "bolha das pontocom," ele foi ultrapassado. Os críticos da imigração dizem que há hoje mais de 1 milhão de pessoas com vistos H-1B e mais 325 mil detentores dos vistos L-1 (que permitem a transferência interna de trabalhadores de uma subsidiária estrangeira de uma companhia para os EUA). Sem dúvida, uma das razões para a entrada é que os estrangeiros são mais baratos, mas os empregadores argumentam que há também uma falta de americanos qualificados. O mesmo argumento se aplica na escala mais baixa do emprego, em setores mal pagos, como a indústria hoteleira, fast food, agricultura, enfermagem e abatedouros de animais; estes não conseguiriam sobreviver sem imigrantes. O argumento é que os imigrantes fazem os serviços sujos e perigosos porque os americanos não os querem. O contra-argumento é que os americanos os fariam se tivessem salários decentes. Mas há poucas evidências de que Joe White, por qualquer salário, estaria disposto a trabalhar ao lado de José Blanco colhendo frutas na Califórnia. Em 1994, o governo Clinton, chocado por vídeos que mostravam hordas de mexicanos perambulando impunemente pela rodovia que leva a San Diego, implantou a "Operação Vigia de Portão" ao longo da fronteira da Califórnia. Isso significou na Califórnia duas cercas altas correndo em paralelo, helicópteros sobrevoando a área dia e noite, câmeras com visão noturna e sensores eletrônicos escondidos. A entrada de imigrantes ilegais após 1994, ao longo dos 106 km de fronteira da Califórnia com o México, caiu ao mínimo. Mas a que custo? O fluxo se direcionou para o caminho de menor resistência: a vastidão desértica do Arizona, onde às vezes a fronteira é só um poste ou um pedaço de cerca enferrujada. Em 2004, a Patrulha de Fronteira do Arizona fez 580 mil prisões, metade do total nacional, em comparação a apenas 9% antes da operação lançado por Clinton. A mudança tem custos, o pior dos quais é a perda de vida de imigrantes que tentam caminhar por cinco dias nas temperaturas escaldantes do Arizona e sucumbem à sede. Conforme observam agentes de fronteira, é fisicamente impossível carregar água o suficiente, e os guias dos grupos sempre querem deixar os fracos para morrer. Segundo o reverendo Robin Hoover, cuja organização Humane Borders tenta impedir essas mortes colocando tanques de água no deserto, pelo menos 221 pessoas que atravessaram a fronteira morreram no Arizona no ano passado. Então, qual é a solução? "Solidificar a fronteira" com fortificações ao estilo da "Operação Vigia de Portão", de costa a costa é uma ilusão. Seria caro demais.

Plano de Bush é conceder vistos de trabalhadores temporários, renováveis a cada três anos, aos ilegais"

Uma resposta melhor seria aceitar a realidade econômica. É irreal imaginar que a imigração vá cair. Afinal, um estrangeiro ilegal trabalhando em condições de semi-escravidão ainda pode ganhar o suficiente para sustentar uma família grande em casa (as remessas de dinheiro dos EUA para o México somaram US$ 16,6 bilhões no ano passado, ficando atrás apenas das receitas obtidas pelo México com as exportações de petróleo). A dificuldade é conciliar a realidade econômica com a realidade política. Para a maioria dos economistas, a imigração é um "algo a mais" econômico, no mínimo porque a maioria dos imigrantes são de adultos jovens e saudáveis. Levando em conta a diferença entre os impostos pagos e benefícios recebidos pelos imigrantes, o National Research Council informou em 1997 que havia um "ganho positivo significativo" de até US$ 10 bilhões por ano para os americanos nativos. Embora um imigrante com nível de educação inferior ao segundo grau tinha um impacto fiscal negativo de US$ 13 mil no longo prazo, um imigrante com melhor nível de educação produz um ganho de US$ 198 mil no longo prazo. Em 2002, o conselho de assessores econômicos da Presidência estimou esse ganho em até US$ 14 bilhões ao ano. Mas o Diabo está nos detalhes: a carga financeira da imigração ilegal recai principalmente sobre os Estados e municípios. A Federação para a Reforma da Imigração Americana avalia que a Califórnia gasta US$ 7,7 bilhões por ano educando imigrantes ilegais e seus filhos, US$ 1,4 bilhão por ano com saúde e mais US$ 1,4 bilhão com ilegais que estão presos. Além disso, os salários menores pagos aos imigrantes podem resultar em salário menor para os americanos também. Isso se traduz em pressões populistas anti-imigração, cujo perigo os políticos ignoram. Um dos motivos da derrota de Tom Daschle, líder democrata do Senado, nas eleições de novembro, foi seu histórico de votos "pró-imigração". Daí o futuro incerto da proposta de Bush do trabalhador convidado. Sua idéia é que os trabalhadores ilegais vão receber "vistos de trabalhadores temporários", renováveis a cada três anos, que lhes permitirão ir a seus países de origem e voltar sem medo de não conseguirem entrar nos EUA. Contas-poupança com isenção de impostos, disponíveis quando eles voltarem para casa, serão um incentivo para que saiam da ilegalidade. Qualquer trabalhador temporário que quiser continuar definitivamente nos EUA terá que entrar na fila; não haverá "vantagens injustas" sobre quem seguiu a lei. O plano de Bush parece sensível, mas para a linha-dura é simplesmente o prelúdio de uma anistia e, por isso, vai encorajar ainda mais a imigração ilegal. O mesmo ocorre com o projeto de lei AgJobs, apresentado novamente a um Congresso hesitante. O projeto dá status legal temporário ao trabalhador no setor agrícola com uma carga de trabalho de pelo menos 100 dias desde julho de 2003, e permite a ele requerer visto de residência permanente se trabalhar outros 360 dias nos próximos seis anos. Mas será que a linha-dura tem uma alternativa viável? A deportação de vários milhões de estrangeiros ilegais seria um pesadelo logístico, financeiro e também moral, uma vez que os filhos desses imigrantes nascidos nos EUA teriam o direito de ficar no país. Do mesmo modo, sanções contra empregadores de estrangeiros ilegais não parecem ser uma boa idéia: eles alegam que não se pode esperar que sejam especialistas em detectar documentos falsos. E poucos políticos estão dispostos a alarmar os empresários que financiam suas campanhas eleitorais. Paradoxalmente, a melhor solução pode ser relaxar, e não aumentar, as restrições sobre a imigração. O Cato Institute, de orientação liberal, diz que, quando as barreiras à entrada são pequenas, a migração se torna um processo circular. Sob o programa "bracero", que funcionou de 1942 a 64, trabalhadores mexicanos entravam e saíam do mercado de trabalho americano quase que à vontade (embora sob condições de trabalho deploráveis). Em contraste, quando as barreiras são muitas, há todo tipo de incentivos para que entrem no país e permaneçam. Usando como exemplo Porto Rico, que assim como o México é pobre mas, ao contrário do México, não sofre com barreiras à imigração, Daniel Griswold, do Cato Institute, diz que nos anos 80, 46% dos porto-riquenhos que se mudaram para os EUA ficaram no país por menos de dois anos. Nos anos 90, "a migração de fora havia cessado completamente, apesar dos níveis persistentemente altos de desemprego". Legalizar a migração mexicana, afirma Griswold, iria de uma só vez "trazer à tona um enorme mercado subterrâneo" e melhorar as condições de trabalho para milhões de trabalhadores de baixa capacitação. Talvez, mas não espere que qualquer político chegue tão longe. Em vez disso, agradeça por Bush ter aberto o debate. Como ele disse no discurso sobre o estado da União deste ano, o atual sistema de imigração é "inadequado às necessidades de nossa economia e aos valores de nossa pátria. Não deveríamos ficar satisfeitos com leis que punem pessoas que trabalham duro e que querem só sustentar suas famílias... É hora de uma política de imigração que permita a trabalhadores convidados temporários preencher vagas que os americanos não querem... e feche a fronteira para traficantes e terroristas". Os congressitas convenientemente aplaudiram. Se eles vão ou não transformar seus aplausos em votos, é uma outra história.