Título: Rigidez que não assusta fantasmas
Autor: Pariz, Tiago
Fonte: Correio Braziliense, 02/03/2010, Política, p. 2

Instalação do ponto eletrônico, anunciada como medida moralizadora, corre o risco de cair no vazio, pois 71% dos funcionários, os de confiança, podem ser dispensados de marcar presença

Na teoria, servidores têm de comprovar atuação das 9h às 12h e das 14h às 19h. Implementação do maquinário custa R$ 2,2 milhões

A Câmara entrou na fase de testes do ponto eletrônico com o risco de desperdiçar o investimento feito para coibir servidores fantasmas. A ampla maioria de funcionários da Casa, os chamados secretários parlamentares, terão, por enquanto, um regime diferenciado. Os deputados poderão dispensar esses servidores de marcar presença. Detalhe: esses cargos são ocupados por pessoas de confiança, nomeadas livremente, sem concurso, que atuam nos gabinetes em Brasília e nos estados. São os postos em que há os maiores índices de denúncias de pessoas que ganham salário sem trabalhar.

Os primeiros que foram cadastrados no ponto biométrico foram os servidores efetivos da casa e os ocupantes de cargos de natureza especial (CNE). Os secretários começaram a ser incluídos no sistema ontem, mas continuaram com a regalia de ter a presença atestada pelo parlamentar. Na Câmara, esse grupo é composto por 11.316 funcionários. Os efetivos somam 3.502 e os CNEs, 1.315. Menos da metade do secretariado e 29% do total de trabalhadores da Casa legislativa. A Mesa Diretora da Câmara estuda o que fazer para essa grande maioria. Existe até a possibilidade de dispensar do ponto os secretários parlamentares que atuam nos estados, criando uma casta de funcionários com regalias. A dificuldade é encontrar um meio para provar que os ocupantes de postos de confiança lotados nos estados cumpriram seus horários e estão recebendo para realizar suas tarefas. Instalar os sistemas nas bases eleitorais é considerado inviável.

Ceticismo

Essa é justamente a crítica que servidores concursados fazem ao sistema de ponto eletrônico: beneficiar a grande maioria de funcionários com cargos políticos que atendem aos gabinetes e ao apoio nos estados. ¿Se a medida valer para todo mundo, é ótimo, mas se for somente para uma parte, não vai funcionar¿, disse Humberto Licursi, 53 anos, que trabalha na comissão de Representação Brasileira do Parlamento do Mercosul e contabiliza 35 anos de serviço à Câmara como funcionário efetivo.

Dois dos 92 pontos eletrônicos espalhados pela Câmara estão ao lado da porta da Representação. Licursi e o colega de trabalho Nazir Isaac, 52, dizem que suas rotinas não serão alteradas pela marcação de presença, mas estão céticos quanto à extensão para os secretários. Na fase de transição, quando o ponto era marcado diretamente nos computadores, quem atuava nos gabinetes foi desobrigado de utilizar o sistema. Bastava o deputado atestar a presença. ¿Os fantasmas não vão acabar nunca, eles sempre encontram um jeito para, mesmo marcando presença, não trabalhar¿, disse Licursi.

O custo de implementação do ponto é de R$ 2,27 milhões, segundo informação da Primeira-Secretaria. Até agora, foram gastos R$ 1,8 milhão para instalar os 92 equipamentos. No total, serão 150. Hoje, haverá o grande teste do sistema. Ele passará a contabilizar as horas extras dos funcionários, limitadas a duas horas diárias após as 19h. Os servidores deverão marcar presença das 9h às 12h e das 14h às 19h.

Depois de cadastrar todos os servidores, ainda que alguns com privilégios, a Câmara planeja encerrar a fase de testes e colocar o ponto para funcionar até, no máximo, o início de abril. Há um ano, o presidente da Casa, deputado Michel Temer (PMDB-SP), comprometeu-se com essa proposta.

Os fantasmas não vão acabar nunca, eles sempre encontram um jeito para, mesmo marcando presença, não trabalhar¿

Humberto Licursi, 53 anos, servidor efetivo da Câmara há 35 anos

O número 150 Quantidade de aparelhos previstos para registrar os horários de entrada e saída

Memória Precedente preocupante

A resposta do Senado para a farra das horas extras também foi a instalação do ponto eletrônico, mas tornaram-se comuns os casos em que parlamentares jogaram no ralo as medidas de vocação moralizadora. Dezenove parlamentares requisitaram à direção a dispensa do controle do ponto de 274 funcionários que atuam em seus gabinetes. O ato que permitiu a liberação dos funcionários foi revelado pelo Correio em janeiro. Norma assinada pelo primeiro-secretário, Heráclito Fortes (DEM-PI), prevê a dispensa do controle eletrônico de trabalhadores dos gabinetes de senadores, de integrantes da Mesa Diretora e de lideranças por decisão dos parlamentares.

A liberação deverá ser publicada no Portal da Transparência, no site do Senado. Segundo o ato do primeiro-secretário, cada parlamentar assumirá ¿a responsabilidade pelo controle e registro da frequência mensal desses servidores¿. Desde a implementação, no entanto, servidores tentam dar um jeitinho de burlar a regra. Como é obrigação marcar a presença às 8h30 e às 18h30, muitos funcionários chegam na hora, batem o ponto de manhã, saem do Senado e voltam mais tarde. Nos primeiros dias da norma, o fluxo de funcionários usando o serviço de transporte interno do Congresso para ir aos estacionamentos da Casa era maior do que o fluxo de pessoas chegando para trabalhar. (TP)