Título: Insolvência de médias e pequenas empresas é grande risco no 1º tri
Autor: Lamucci , Sergio
Fonte: Valor Econômico, 21/01/2009, Especial, p. A11

A insolvência de médias e pequenas empresas deve aumentar com força no primeiro trimestre, período que deve ser o "fundo do poço" para a economia brasileira, avalia José Roberto Mendonça de Barros, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e sócio da MB Associados. Segundo ele, essas companhias enfrentam forte concorrência das empresas de maior porte no mercado de crédito, o primeiro e principal canal de contágio da crise global para o Brasil. Para completar, lutam contra a falta de demanda e estoques indesejados. Gustavo Lourenção/ Valor

Mendonça de Barros: com queda rápida e surpreendente da demanda, PIB deve crescer no máximo 2% neste ano

O caminho de várias companhias médias e pequenas deverá ser a recuperação judicial, que já aumentou com força no fim do ano passado, diz Mendonça de Barros. O economista diz que o tamanho desse movimento terá um grande peso para definir os rumos do emprego. Para ele, as demissões até o momento já significam uma redução da capacidade produtiva do país, e não apenas um ajuste de contratações temporárias.

Mendonça de Barros projeta um crescimento de 2% para 2009. "E é o topo", diz ele, destacando a rápida e surpreendente desaceleração da demanda. O consumo privado perdeu fôlego imediatamente, dado o temor de que não seja possível manter a renda, enquanto as empresas adiaram seus projetos de investimento, devido a fatores como a falta de crédito e o aparecimento de capacidade ociosa, num cenário de retração da demanda externa e interna. "Mudou a prioridade das empresas. Agora o caixa é rei", diz, lembrando que as exportações não vão puxar a atividade.

O economista ressalta o papel do crédito para explicar o tombo da atividade. "Até hoje, para entender o que acontece do lado real da economia, o crédito é a variável central", diz ele. Segundo Mendonça de Barros, há um congestionamento nesse mercado, que prejudica especialmente as empresas médias e pequenas. Uma soma de fatores travou o segmento, diz ele: o crédito externo secou, as operações com derivativos cambiais pioraram a percepção de risco, empresas com vencimentos de bônus no exterior tomaram dinheiro no mercado interno para honrar as dívidas lá fora e algumas multinacionais ordenaram que suas filiais remetessem capital de giro para as matrizes. Em alguns casos, as subsidiárias tomaram empréstimos em reais para mandar o dinheiro para fora. "Em 30 anos de consultoria, eu nunca vi isso."

Para Mendonça de Barros, o momento pede cortes de juros mais agressivos - ele acredita numa redução de 0,75 ponto percentual amanhã, mas diz que gostaria de ver uma baixa de um ponto. O economista é cético quanto ao que pode ser feito por meio da política fiscal. O ideal seria aumentar os investimentos, mas a elevação dos gastos correntes dificulta essa tarefa. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Como foi o contágio da economia brasileira pela crise?

José Roberto Mendonça de Barros: Como nós estamos mais integrados no mundo e o mundo mudou de sinal, teríamos que sentir o impacto, mas a surpresa é que foi muito mais rápido do se imaginava. O primeiro canal de contágio foi o crédito. Até hoje, para entender o que acontece do lado real da economia, o crédito é a variável central. Com a quebra do Lehman Brothers, a tranca do crédito lá fora foi instantânea e chegou aqui "overnight". Foi muito forte em parte porque o crédito externo secou, incluindo o financiamento ao comércio exterior, o que raramente acontece. Daí migrou aqui para dentro, porque o sistema bancário rapidamente percebeu que havia um problema maior.

Valor: Por que o crédito secou tão rapidamente no Brasil?

Mendonça de Barros: A percepção do sistema bancário foi de que o risco aumentou muito, e o que deixou isso claro foram as operações de capital de giro com derivativos cambiais. Elas tinham se generalizado nos meses imediatamente anteriores a setembro. Em alguns casos, tornaram-se até operação de plataforma bancária. Dois ou três exemplos conhecidos apareceram como farol, e se soube que havia uma porção de casos, inclusive de empresas menores. A maior parte das operações até hoje não foi acertada. Os bancos fecharam as posições na BM&F e então isso virou um problema de crédito.

Valor: Isso ainda trava o crédito?

Mendonça de Barros: A maior parte das operações entre banco e empresa ainda não foi acertada. O sinal do risco foi imediato e o crédito parou. Os bancos pequenos e médios também deixaram de fornecer crédito, porque ficaram sem funding. Chegamos em novembro e dezembro e esse mercado ficou mais atrapalhado, pois dois fenômenos se somaram. Muitas empresas que tinham vencimentos de bônus no exterior vieram no mercado de crédito interno para comprar reais, transformar em dólares e pagar o título lá fora. Passamos a ter no mercado de reais uma competição que nunca aconteceu dos grandes contra os médios. Um agravante é que o volume de renovação de posições externas era muito grande em dezembro. Depois que a crise estourou, a chance de renovação é quase zero. Algo como US$ 7 bilhões tiveram que ser tomados em reais, transformados em dólares e levados lá para fora. Como a demanda caiu muito rápido, apareceram estoques indesejados. Quando aumenta o estoque, o risco do cliente aumenta junto, porque há uma escolha difícil: ou vende com deságio enorme e toma prejuízo, ou tem que tomar dinheiro em reais para carregar esse estoque. Esse é um dos motivos pelos quais a desvalorização do real não virou inflação. E veio outro fator que eu nunca tinha visto: um número enorme de multinacionais mandou as filiais remeterem o capital de giro para a matriz.

Valor: O capital de giro?

Mendonça de Barros: Isso mesmo. Conheço casos de empresas que foram mais radicais: mandaram tomar dinheiro em reais e remeter o resultado em empréstimos. Eu nunca vi isso em 30 anos de consultoria. Uma empresa me disse que um cliente falou: eu quero pagar tudo que devo para vocês, vamos discutir o desconto que você pode me dar. O empresário achou bom, mas perguntou por quê. O cliente respondeu: a matriz pediu para mandar tudo de volta e eu estou com medo de o dinheiro ir e não voltar, e aí quem fica com problema sou eu. Isso também pressionou o mercado de reais.

Valor: Além do crédito, que outros fatores afetaram o Brasil?

Mendonça de Barros: O segundo foi o câmbio, que se desvalorizou de imediato e causou vários problemas: quem tinha que importar, por exemplo, está pagando mais caro. O terceiro canal foi a exportação, que nos pega em duas pernas. Primeiro, nos mercados de commodities, porque a demanda desmontou e os preços caíram. Também pegou feio a indústria em geral, que é fornecedora para a América Latina e África. O maior exemplo é o mercado argentino.

Valor: Por que a população parou de comprar?

Mendonça de Barros: Apesar de o mercado de trabalho não ter em outubro sinalizado encolhimento, a redução na demanda por bens mais caros foi rápida. Um pedaço é crédito, mas não é só isso. Houve redução no tráfego nas lojas. As pessoas estão tão decididas a não comprar que sequer vão às lojas. Os consumidores perceberam que vinha uma onça meio brava pela frente. Há o medo de não conseguir manter a renda. Aí é rádio-peão. Todo peão de fábrica sabe que, se a empresa chama férias coletivas fora da época tradicional, um pedaço não volta mais. Nas faixas de renda média para cima, há o efeito da imprensa. Muita gente perdeu dinheiro na bolsa, no fundo de pensão. E as empresas começaram a adiar investimentos, o que acalma a demanda por mão-de-obra qualificada.

Valor: Por que as empresas reduziram os investimentos?

Mendonça de Barros: A carteira de pedidos dos fabricantes de máquinas desmontou. A Lehman Brothers quebrou em setembro, quando as empresas começam a fazer planejamento estratégico para o próximo ano. Na incerteza, a primeira decisão é postergar o investimento. Mudou a prioridade das empresas. Quando a economia está crescendo, as empresas observam a participação de mercado. A preocupação é não ficar para trás de seus concorrentes. Para isso, é necessário crescer, investir. Para fazer isso, até se sacrifica margem. Mas, com esse solavanco, inverte-se a gestão. Agora o caixa é rei. As empresas também começam a ajudar a contração do crédito, porque toda empresa dá crédito para fornecedor e cliente. Foi tão violento que teve empresa que perdeu sinal de até R$ 5 milhões de máquinas, para desistir do investimento.

Valor: Quando deve ocorrer a retomada dos investimentos?

Mendonça de Barros: Vai demorar um pouco. Em alguns setores com pressão de capacidade, havia a perspectiva de investir. Em automóveis, tinha fila. As empresas trabalhavam desesperadamente para atender à demanda: três turnos, temporários. As companhias pensaram que teriam que fazer uma fábrica nova. Mas daí vem uma trava dessa. Desapareceram as filas e a capacidade ociosa aumentou. Por que fazer uma fábrica? Em segundo lugar, os projetos ficaram mais arriscados. O problema hoje não é só vender, mas também receber. Terceiro, o custo do dinheiro aumentou. O que caiu foi a taxa básica de juros nos países, mas a taxa de empréstimo continua absurda. Também não há mais nada ligado ao longo prazo, nem garantia, nem crédito. A Petrobras vai ter que adiar investimento. A empresa é até um caso à parte, porque foi pega sem caixa. Como o investimento público está todo atrasado e a Petrobras está sem caixa...

Valor: O governo pretende aumentar o investimento da Petrobras em 2009. O senhor acha difícil?

Mendonça de Barros: Eu acho impossível. E, se der suporte à Petrobras via BNDES, por exemplo, alguém vai ficar fora. Quantas empresas deixaram de tomar dinheiro na Caixa por aqueles R$ 2 bilhões que a Petrobras tomou?

Valor: A situação das empresas médias é o maior risco hoje?

Mendonça de Barros: Há um risco enorme nessa direção. Levantamento da Serasa mostra como as recuperações judiciais estão aumentando. Foram 95 em outubro, 195 em novembro e 230 em dezembro. Acho que vai ter um aumento enorme na insolvência neste início de ano. Por dois, três meses, toda empresa se segura: atrasa um pouco, não paga o imposto por algum tempo, usa dinheiro da pessoa física, frita o estoque, vende alguma máquina. Mas depois não tem mais jeito. Está chegando essa hora. Estou preocupadíssimo com o agronegócio. Tem algumas grandes empresas no setor, mas há uma miríade de distribuidores, empresas médias e pequenas, para as quais a água está subindo e já está entre o bigode e a sobrancelha. Autopeças também está assim. Esse é o grande desafio do primeiro trimestre. Acho que vai acontecer um aumento forte na insolvência, especialmente nas faixas médias das empresas, porque segue a restrição do crédito. O tamanho disso é que vai determinar, fora esse dezembro horrível do mercado de trabalho, qual vai ser o impacto. Há um conjunto de problemas para a empresa média: crédito apertado, falta de demanda, estoque alto. E o governo trabalha como se todo o problema do mundo se resumisse a repor, via banco público, a oferta de crédito. Não é verdade.

Valor: Por quê?

Mendonça de Barros: Eu sou cético em relação à eficácia dessas medidas, porque os bancos públicos também operam com critérios de risco e comitês de crédito. A primeira coisa que o BNDES pede é uma carta de fiança, e onde o empresário vai conseguir isso? E não é porque o BNDES é chato, mas porque o manual de normas exige. O primeiro problema foi o crédito, mas em seguida veio a demanda. A questão é que a política pública reconhece apenas a escassez de crédito. Temos problema na oferta e na demanda. Essa é a razão pela qual nós, na MB, baixamos a estimativa de PIB para 2%. E é o topo.

Valor: Quando será o fundo do poço para a economia?

Mendonça de Barros: O primeiro trimestre. Nós vamos ter uma recessão técnica. Houve queda do quarto trimestre em relação ao terceiro e deve haver nova queda do primeiro sobre o quarto. A aposta é de melhora no segundo.

Valor: O que o governo pode fazer para estimular a demanda?

Mendonça de Barros: Não é muita coisa. Primeiro, é baixar os juros, coisa que achamos que vai ocorrer. Acho que o BC vai cortar 0,75 ponto percentual, mas poderia ser mais. Eu gostaria de ver um ponto, mas acho que isso o BC não faz. O importante é que seja uma baixa significativa e a ata deixe claro que vai ter mais. Acho que o ciclo inteiro de baixa vai ser de três pontos.

Valor: O BC perdeu o timing de começar a queda de juros?

Mendonça de Barros: Sim, mas por outra razão. O timing para nós era a última reunião, e não por causa do lado real, porque o BC não olha isso. É que estamos baixistas em relação à inflação desde outubro do ano passado. O mundo está em situação deflacionária. Há uma queda de demanda que já se antevia em outubro e novembro. Há queda de preços internacionais que mais que compensa o câmbio. Estamos em um momento razoavelmente bom de preços agrícolas. E, quando o câmbio está muito volátil, o empresário evita reajustes. Ele não sabe se forma o preço com o dólar a R$ 2,30 ou R$ 2,50.

Valor: Além de cortar os juros, o que mais o governo pode fazer?

Mendonça de Barros: O ideal da política fiscal keneysiana é aumentar o gasto não-recorrente, visando mais competitividade, para minimizar o problema do curto prazo e maximizar o ganho quando o mundo voltar ao normal. Tipicamente, há três coisas: investir em infra-estrutura, em conhecimento e reduzir tributação. Tire o último, que não está no rol das possibilidades. A opção do governo tem sido maiores gastos correntes. O investimento público está devagar. Apesar da retórica oficial, a maior parte do PAC está atrasada.

Valor: O investimento do governo federal no ano passado foi de R$ 26,1 bilhões, 36% a mais do que em 2007. É um aumento expressivo em termos relativos.

Mendonça de Barros: Mas ainda é pouco. A Fundação Dom Cabral fez uma avaliação de 30 projetos do PAC de infra-estrutura e olhou cuidadosamente a possibilidade de atraso. É grande. A outra coisa é o efeito caixa do problema da Petrobras, que vai adiar projetos.

Valor: Como fica o Brasil em relação a outros países?

Mendonça de Barros: Projetamos 2% de crescimento, com queda da inflação e nenhum problema grave de ordem externa, o que não é um mau resultado, em termos relativos. Isso quer dizer que o preço que o Brasil paga à vista por essa crise é menor que de outros lugares equivalentes ou de países desenvolvidos, porque os bancos não vão quebrar, as empresas estavam pouco alavancadas e não é necessário uma reestruturação profunda no sistema produtivo. Mas o custo a prazo vai ser maior, porque não vamos melhorar a condição competitiva mais adiante. Com isso, o PIB potencial vai voltar a cair, porque deixarão de investir. A onda de investimentos que está levando o PIB potencial para 5%, vai recuar e vamos voltar para 4%.

Valor: O ajuste no mercado de trabalho envolve apenas empregados temporários ou são cortes na carne? E qual vai ser o impacto em uma demanda já enfraquecida?

Mendonça de Barros: Já há ajustes nessas demissões para níveis menores de produção corrente. Não é só trabalhador temporário por causa de estoque em excesso. Já há empresas calculando que vão produzir 80% do ano passado. O mercado de trabalho será menor, o que vai impactar a demanda. Por causa disso cortamos para baixo o PIB. Mas, qualquer que seja o caso, é uma hipótese razoável que o crédito e o consumo tendem a melhorar um pouco ao longo do ano.

Valor: Como fica o cenário externo? Ele vai puxar as exportações a partir do segundo semestre?

Mendonça de Barros: No fim de 2008, o cenário para os EUA era de que haveria um vale profundo no primeiro semestre de 2009 e a recuperação começaria no início do segundo semestre. Agora, acho que a melhora foi empurrada um trimestre mais para frente, mesmo no cenário otimista. Primeiro, o caso Madoff mostrou que ainda há coisa para boiar na superfície. Isso dá insegurança, mantém o risco de crédito elevado e segura um pouco a recuperação. Bancos que aparentemente já estavam em terra firme precisaram de mais dinheiro, como Bank of America e Citibank. As pessoas também começaram a perceber que a política fiscal tem um timing que não é instantâneo. Não há como escapar: até virar demanda de cimento está mais para um ano do que para seis meses.