Título: A Comissão Interamericana de Direitos Humanos em perigo
Autor:
Fonte: O Globo, 17/03/2013, País, p. 6

O texto ao lado traz a opinião dos onze jornais que compõem o Grupo de Diarios América (GDA), do qual O GLOBO faz parte. Trata do ataque desferido à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e à Relatoria de Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA). Embora o sucesso destes ataques seja muito pouco provável, sobretudo pela definição do Brasil, distante da posição dos países que patrocinam estes ataques - Venezuela, Equador e Bolívia -, O GLOBO endossa esta opinião por entender que a Liberdade de Expressão e os Direitos Humanos são patrimônios de povos e nações que exigem vigilância e proteção permanentes.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), criada para proteger os cidadãos dos abusos de seus governos, provavelmente vê com profunda apreensão a próxima reunião da Assembleia Geral do dito organismo ante a eventualidade de que ela estabeleça cerceamentos substanciais a suas atribuições, reduzindo-a a uma instância sem alcances reais.

A referida reunião extraordinária, que se realizará em 22 de março, em Washington, tem a intenção de por fim a um processo de mais de um ano de deliberação sobre o funcionamento da CIDH e, particularmente, de sua Relatoria de Liberdade de Expressão (RLE). Se aprovadas as propostas, esta seria a décima reforma adotada pela Comissão desde sua fundação em 1959. Entretanto, diferentemente das anteriores, neste caso se trata de subtrair faculdades da CIDH e não aumentá-las.

No início desta semana, os Estados membros da Convenção Americana de Direitos Humanos se reuniram no Equador para "afinar" as propostas que apresentarão em 22 de março. Entre os oito pontos acordados nessa conferência, dois deles fazem alusão direta à RLE.

O primeiro pretende eliminar a capacidade de financiamento externo das relatorias. Isso, na prática, reduziria os fundos da relatoria.

O segundo impediria que possa seguir publicando informes sobre a situação de imprensa nos países membros da OEA sem a prévia aprovação dos mesmos. Obviamente, isto é sinônimo de impedir que siga publicando informes independentes. O presidente do Equador, Rafael Correa, por sua vez, interveio na reunião para pedir que se elimine o poder da CIDH para emitir medidas cautelares, mas não houve consenso nesse tema (pelo menos, ainda não).

As tentativas de reduzir as atribuições da RLE, naturalmente, partem dos governos mais restritivos à liberdade de expressão e, consequentemente, os mais criticados em seus informes. Particularmente, Venezuela, Equador e Bolívia têm sido eloquentes nesta cruzada. O embaixador da Venezuela na OEA disse que a CIDH "é um instrumento do império", e o agora falecido Hugo Chávez classificou o secretário executivo da Comissão em termos que não é o caso de reproduzir. O presidente do Equador assinalou que a CIDH é "um dos últimos vestígios do neoliberalismo da região". E o presidente da Bolívia, Evo Morales, declarou que a CIDH vê violações "unicamente em países que não compartilham as políticas do governo dos Estados Unidos".

Tais nações têm encontrado apoio em um grupo de membros da OEA, incluindo governos que não podem ser acusados de antidemocráticos, mas sobre os quais a CIDH se pronunciou por diferentes motivos. O Brasil, por exemplo, foi solicitado a interromper a construção de uma represa por uma medida cautelar, mas não o fez. E desagradou à Colômbia ver-se como um país violador de direitos humanos no informe anual da CIDH.

Não se pode dizer, porém, que a ofensiva contra a Comissão seja um castigo frente a um uso político de suas faculdades. Aqui aparecem governos muito diferentes unidos por um interesse comum: podem fazer o que quiserem dentro dos seus países, sem controles externos.

Não acreditamos que este seja um interesse que possam compartilhar os cidadãos de qualquer país. E menos ainda daqueles que como os latino-americanos não contam com Estados de Direito consolidados ou separações reais de poderes, com sistemas judiciais realmente independentes.

Não canonizamos o sistema da CIDH. No desempenho de suas delicadas funções é inevitável que tenha cometido erros. No entanto, pensamos que grande parte das acusações que lhe fazem deriva de ter cumprido com sua função: enfrentar os abusos que os governos cometeram e cometem contra as liberdades cidadãs, e, em especial, contra a liberdade de imprensa. Tal razão deveria bastar para que todos os cidadãos latino-americanos soubessem o quanto está em jogo em sua defesa. Certamente, é motivo suficiente para que o o Grupo de Diarios América (GDA), organização nascida há 21 anos para promover a qualidade jornalística e a liberdade de expressão no continente, sinta a necessidade de dar um urgente grito de alerta.