Título: Nosso poder de fogo é grande
Autor: Meirelles, Henrique; Nunes, Vicente
Fonte: Correio Braziliense, 13/09/2009, Economia, p. 19

Presidente do Banco Central afirma que país tem arsenal de medidas contra eventual segunda onda da crise mundial

O Brasil tem disponíveis e implantados mecanismos de reação à crise. Os mecanismos de empréstimos de reservas internacionais estão estruturados, assim como os de liberação de depósitos compulsórios. O BC pode reverter a qualquer momento a política de acumulação de reservas¿

O presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, está convencido de que, um ano depois da quebra do banco americano Lehman Brothers, fato que empurrou o mundo para a mais grave crise desde 1929, o Brasil tem razões de sobras para comemorar. Além de a economia ter deixado a recessão para trás em apenas seis meses, ao crescer 1,9% no segundo trimestre de 2009 ante o primeiro, as reservas cambiais estão US$ 15 bilhões maiores do que antes do estouro da bolha imobiliária americana, a inflação está sob controle e o desemprego, em baixa. ¿Tudo isso foi possível porque o governo tomou as medidas corretas na hora certa¿, diz.

Mas o mais importante, na opinião de Meirelles, é que a recuperação foi possível sem que o Brasil tivesse que sacrificar seus fundamentos macroeconômicos para tentar crescer mais e, depois, retroagir. Foi essa postura firme que permitiu, inclusive, ao BC, promover um processo inédito de queda da taxa básica de juros (Selic) em tempos de crise.

Diante da obstrução do crédito internacional, o BC abriu os cofres para socorrer empresas e exportadores, liberando US$ 39 bilhões. Interveio com US$ 33 bilhões no mercado futuro de câmbio para desmontar operações especulativas com o real. Para evitar problemas no sistema financeiro nacional, liberou R$ 100 bilhões que os bancos haviam depositado compulsoriamente em seu caixa. Todas, medidas sem custo fiscal. Quanto às políticas anticíclicas adotadas pelo Ministério da Fazenda, que têm causado desconforto no mercado por estarem focadas no aumento de gastos com pessoal, ele assegura que o Brasil está em uma posição confortável. Enquanto o deficit fiscal brasileiro fechará este ano em 3,2% do Produto Interno Bruto (PIB), na média dos países do G-20 o rombo será de 8,1%.

O presidente do BC garante que o Brasil está pronto para crescer por um longo período a taxas expressivas, sem pressões inflacionárias. Para os que temem os efeitos de uma nova onda de crise, ele tranquiliza: ¿Nosso poder de fogo é grande. Temos um arsenal de medidas pronto para ser usado¿. Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista que Henrique Meirelles concedeu ao Correio Braziliense.

¿Nosso poder de fogo é grande¿

Para Meirelles, um dos grandes desafios do país é o investimento em infraestrutura que ajude a economia a crescer sem desequilíbrios Marcelo Ferreira/CB/D.A Press

Existem incertezas quanto à trajetória de recuperação dos países de economias avançadas, particularmente, os Estados Unidos. Lá, a recuperação ainda tênue está muito ancorada nos incentivos fiscais¿

Ao contrário dos países mais ricos, a recessão no Brasil foi rápida e menos profunda. Diante do crescimento do PIB no segundo trimestre, de 1,9%, há uma ala de economistas dizendo que o Brasil saiu mais forte da crise do que entrou. O senhor concorda? Sim. O Brasil já entrou mais forte na crise porque sua posição relativa em relação aos demais países emergentes e países avançados melhorou. Por isso, o nosso crescimento pós-crise está se dando de forma mais rápida e mais forte. Além do mais, os sólidos fundamentos da economia brasileira foram preservados durante a crise. As reservas internacionais do país estão maiores do que na entrada da crise (US$ 220 bilhões contra US$ 205 bilhões em agosto de 2008). A situação fiscal do Brasil é bem mais confortável do que a média do países do G-20 (grupo das 20 nações mais ricas do planeta). O sistema financeiro nacional tem o mesmo nível de capitalização de antes da crise. O desemprego também está em níveis pré-crise. Portanto, o país preservou suas condições fundamentais. Ou seja, o Brasil tinha recursos quando entrou na crise e tomou as medidas corretas na hora certa.

Havia muitas dúvidas quanto à capacidade do governo de administrar o país em meio a uma crise. O discurso dos críticos era o de que o Brasil não se aproveitou da bonança mundial para crescer mais. O que o senhor tem a dizer a essas pessoas? Digo que o Brasil provou que estava no caminho correto. O país estava crescendo antes do estouro da crise acima da média mundial (6,8%), um crescimento que vinha subindo ao longo do tempo devido à ampliação dos investimentos, ancorado na estabilidade econômica, na inflação nas metas, em uma política de câmbio flutuante e em uma dívida pública cadente em relação ao PIB em função do superávit primário e dos juros reais (que descontam a inflação) cadentes. Então, o importante é que o Brasil entrou na crise com fundamentos sólidos, não sacrificou esses fundamentos para tentar crescer um pouquinho mais e depois ter um retrocesso.

As medidas tomadas pelo governo foram suficientes para efetivamente minimizar os estragos da crise? O segredo para qualquer crise, principalmente para as financeiras, é um diagnóstico preciso, uma ação rápida, com os remédios adequados para se ter o máximo de resultado com o mínimo de efeito colateral. A crise atingiu o Brasil pelo canal de crédito internacional, que contaminou o crédito doméstico. Diante disso, o BC agiu prontamente. Liberou (R$ 100 bilhões em) depósitos compulsórios para restabelecer a liquidez interna. Direcionou 40% desses compulsórios para os bancos pequenos e médios, principalmente os que atuam em segmentos específicos, mais afetados pela crise. Abriu linhas de crédito em dólar para os exportadores e para empresas. Vendeu dólares nos mercados futuros, intervindo em operações de derivativos realizadas por empresas. E, finalmente, vendeu dólares à vista para atender às remessas de capital. Todas essas medidas foram tomadas rapidamente, a tempo e a hora. A partir do momento em que se restabeleceu a liquidez do mercado, o funcionamento do mercado, entraram os estímulos fiscal (corte do IPI) e monetário (queda dos juros).

Há muito receio quanto ao desmonte das políticas anticíclicas quando a economia voltar a crescer. A inflação será uma ameaça concreta? Os banco centrais serão obrigados a elevar os juros? A situação é diferente de país para país, dependendo do tipo de estratégia que foi adotada para enfrentar uma crise que tinha dimensões diferentes. O Brasil, adotou estratégia mais rápida e direcionada. Aqui, alguns mecanismos de intervenção têm estrutura de saída automática, como os empréstimos de reservas. Oferecemos até US$ 36 bilhões às empresas. Ofertamos até US$ 44 bilhões para os exportadores. Hoje, por falta de demanda e pelo fato de os bancos estarem pagando os empréstimos porque voltaram a ter acesso às linhas tradicionais, restam apenas US$ 3 bilhões em financiamento. No mercado à vista, em vez de vender dólares, o BC voltou a comprar. Portanto, o Brasil tem mecanismos autoajustáveis.

Como o senhor avalia a política anticíclica do Brasil? A política fiscal anticíclica do Brasil foi extremamente concentrada em aspectos específicos, como a redução do IPI, os incentivos à construção civil, o aporte de recursos no BNDES. Paralelamente, existia uma série de acordos salariais com o funcionalismo público federal, que foram celebrados antes da crise e tinham uma estratégia de implantação. Foi uma coincidência feliz (o pagamento ter ocorrido durante a crise). Mas, evidentemente, não se tratou de uma estratégia anticíclica contra a crise. Esses contratos foram celebrados num momento de expansão da economia e, portanto devem ser analisados de forma diferente, porque, senão, se chegará a conclusões não muito adequadas. Eu acredito que as políticas anticíclicas foram muito adequadas e menos custosas que nos demais países. A crise no Brasil chegou aos canais de crédito, foi enfrentada nos canais de crédito. Isso restringiu os efeitos na economia real. O setor industrial sentiu primeiro, sobretudo os segmentos de bens mais sensíveis ao crédito, como automóveis e eletrodomésticos. Mas, como o crédito voltou rapidamente, o estímulo fiscal nesses setores foi muito poderoso. Já o setor de serviços foi preservado, assim como o bens de consumo não duráveis e o poder de compra da população. Por isso, os estímulos fiscais não atingiram a dimensão de outros países.

O senhor acredita que o mundo aprendeu a lição ou há riscos de haver uma segunda onda de crise? São duas coisas diferentes. Em primeiro lugar, o mundo aprendeu, sim, com a crise. E o exemplo maior disso são as diretrizes dos bancos centrais e das instituições supervisoras no sentindo de adequar o sistema financeiro mundial para que não se repitam os problemas que resultaram na atual crise. Segundo, existem, sim, incertezas quanto à trajetória de recuperação dos países de economias avançados, particularmente, os Estados Unidos. Lá, a recuperação ainda tênue está muito ancorada nos incentivos fiscais. E, portanto, a saída dos incentivos fiscais, que será necessária, e as limitações do financiamento do deficit público terão de coincidir, para que a trajetória seja sustentável, com o aumento da demanda do setor privado seja pela volta do consumo e dos investimentos. Há uma orquestração delicada que pode gerar incertezas e um eventual recuo no processo de recuperação. O cenário base, no entanto, é de recuperação lenta e gradual com algumas incertezas e volatilidades nos mercados avançados.

O Brasil seria menos afetado em uma segunda onda de crise? Sim. O Brasil tem disponíveis e implantados mecanismos de reação. Os mecanismos de empréstimos de reservas internacionais estão estruturados, assim como os de liberação de depósitos compulsórios. O BC pode reverter a qualquer momento a política de acumulação de reservas. Existe um arsenal montado. E o mercado sabe disso. A sociedade já viu esse arsenal funcionar. Se houver nova crise, o poder de fogo continua montado, à disposição.

Quais vulnerabilidades precisam ser atacadas no Brasil e no mundo, agora que a recessão está ficando para trás? Não há um modelo para o mundo todo. Nos Estados Unidos, será necessário criar mecanismos de aumento de investimento e de substituição do consumo devido à opção pela poupança. Aquele país também terá de enfrentar um processo de consolidação fiscal importante, pois a dívida pública deverá chegar a 70% do PIB ou ir além. A China tem o desafio de criar um mercado doméstico que substitua as compras dos americanos. Os europeus sairão com a situação fiscal fragilizada. Os desafios do Brasil estão relacionados a investimentos de infraestrutura para suportar taxas de crescimento sem desequilíbrios. Há o desafio dos investimentos em educação e na maior produtividade da economia. A reforma tributária é muito importante.