Título: Breve primavera
Autor: Mendes, Candido
Fonte: O Globo, 21/12/2011, Opinião, p. 7

A recente reunião de Doha, das Nações Unidas, voltou-se a um primeiro balanço do impacto da torna democrática no mundo árabe mediterrâneo, a partir da revolução tunisina, de um ano atrás. Evidenciou-se de como a queda dos ditadores Ben Ali, Mubarak ou Kadafi implicou resultados de nítida apreensão, quanto ao primeiro sonho de que essas revoluções envolvessem a entrada desses países de independência recente, e subordinados aos governos discricionários, no compasso da modernidade. Avultam, hoje, as contradições entre a garantia de um laicismo e a volta à religiosidade de Estado, pela Sharia; o reforço dos fundamentalismos na onda de torna à fé islâmica; a presença política da Otan, no condicionamento desses futuros.

Também não deixou de insinuar-se, no caso da Líbia, o próprio periclitar do Estado nacional, nas tensões entre os mundos tribais ressurgentes, após a execução de Kadafi. Nem podia, por outro lado, ser menor o impacto da causa palestina, e o apoio que recebeu a Unesco de reconhecer este governo, apesar da retaliação americana e da retirada dos seus fundos da organização. Múltiplas foram as ofertas de cobrir essas retrações, incluindo, a partir, imediatamente, do mundo árabe, do próprio Qatar, de Omã e da Arábia Saudita. As apostas, ainda, da permanência da Primavera Árabe vieram das surpresas do Marrocos, tanto o rei, pela primeira vez, passa a governar com a presença de um parlamento e a ampla presença de setores minoritários, e cristãos, no seu seio.

Os cuidados redobram-se com a Tunísia, e as sucessivas manifestações de mulheres na ampla preservação da liberdade religiosa, na mesma medida em que os partidos de esquerda representam 25% da nova assembleia constituinte, na confiança de que o grupo islâmico vencedor, o Enhada, descarte as facções radicais no âmbito do novo governo. E o perigo, no Cairo, em que as eleições condicionaram à Fraternidade Muçulmana, principal adversária do antigo governo Mubarak, pela aparição de um percentual de 18% dos salafistas da mais rigorosa tradição fundamentalista.

A incógnita fica sendo o Iêmen, na saída negociadíssima do seu atual presidente, mas na manutenção do velho status quo, a partir de uma aliança com a Otan e os EUA, resultante da entrega para execução de lugares-tenentes de Bin Laden. A Arábia Saudita continua como a indiscutível potência da área, abrindo-se, com o novo rei, ao reformismo mitigado, mas sufocando, ao mesmo tempo, como ainda agora, no Barhein, toda veleidade de que os xiitas venham arrebatar dos sufis o comando da península.

As indecisões, por outro lado, sobre o desfecho do governo de Damasco exprimem o impacto imediato que deverá ter a retirada da massa de iraquianos do seu território, diante da aceleração da saída do exército americano, no jogo nascente das forças políticas de Bagdá.

Nas conclusões do encontro de Doha nasceram expressões como "democracias idiomáticas" e a esperança de que os direitos humanos não sejam vistos como uma ideologia ocidental. Mas o consenso foi o de que um mundo árabe não repetirá a ditadura, nos exemplos de Kadafi, Ben Ali ou Mubarak, que presidiu o advento dos jovens Estados-nação, após o colonialismo do último meio século.

CANDIDO MENDES é integrante do Conselho das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações.