Título: Células superpoderosas
Autor: Baima, Cesar
Fonte: O Globo, 08/07/2011, Ciência, p. 34

Cientistas criam método para isolar célula-tronco capaz de refazer todo sistema sanguíneo

cesarbaima@oglobo.com.br

Uma única célula capaz de se transformar em todas as outras do sangue. Conhecidas como células-tronco hematopoiéticas (HSCs, na sigla em inglês), elas estão na medula óssea de todos nós e são responsáveis por repor o sistema sanguíneo ao longo da vida, renovando-se continuamente. Mas conseguir isolá-las em meio às milhões de outras células presentes no sangue é um trabalho que tem desafiado os cientistas há décadas. Agora, porém, uma equipe de cientistas canadenses conseguiu identificar um marcador na superfície da membrana das HSCs que pode facilitar muito o trabalho, abrindo caminho para o desenvolvimento de tratamentos mais eficientes contra a leucemia e outras doenças do sistema sanguíneo.

¿ Nosso sistema sanguíneo é extremamente hierarquizado ¿ explica Radovan Borojevic, professor emérito do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). ¿ Durante a vida, nosso sangue é renovado constantemente com a fabricação de milhões de células novas. E todas elas derivam de uma única progenitora, as células-tronco hematopoiéticas, que têm que ser usadas com parcimônia para que durem toda a vida.

Como achar uma agulha num palheiro

Para conseguir separar as HSCs, os cientistas canadenses usaram um equipamento chamado citômetro de alto fluxo, que funciona como um filtro, selecionando as células do sangue de acordo com critérios pré-definidos. Por meio de diversos processos seguidos, eles foram dividindo as amostras de sangue em subgrupos contendo outros marcadores já conhecidos ¿ que indicam que a célula pode ser hematopoiética ¿ para, por fim, efetuar uma última seleção das que continham também o novo marcador, batizado CD49f. Injetada em camundongos, uma única célula com todos os marcadores conseguiu repovoar todo o sistema sanguíneo dos animais.

¿ Essas células-tronco são tão raras que é como achar uma agulha em um palheiro ¿ diz John Dick, líder da equipe de pesquisadores e principal autor de artigo sobre a descoberta, publicado na edição desta semana da revista ¿Science¿. ¿ Desde que a ciência das células-tronco começou, os pesquisadores têm procurado essa esquiva célula-mãe, a célula-tronco pura e única que pode ser controlada e cultivada antes do transplante nos pacientes. Recentemente, os pesquisadores começaram a recolher as células-tronco encontradas no sangue de cordões umbilicais, mas para muitos pacientes uma única doação não é suficiente. Com essa descoberta, demos um grande passo para gerar quantidades suficientes de HSCs para permitir seu uso clínico e trazer para mais perto da realidade a promessa da medicina regenerativa.

Borojevic, por sua vez, acredita que a descoberta poderá ser usada no desenvolvimento de diversos novos tratamentos para doenças como leucemia e hemofilia.

¿ No caso da leucemia, poderíamos recolher as pouquíssimas células ainda normais que tivessem este marcador. Depois de eliminar todas as células leucêmicas com tratamentos muito agressivos, reintroduziríamos as células-tronco recolhidas e o paciente teria todo seu sangue refeito por um célula que veio dele mesmo ¿ aposta. ¿ Já na hemofilia, poderíamos corrigir os erros genéticos em células cultivadas em laboratório em vez de introduzir os genes direto no sangue, esperando que se ligassem às HSCs defeituosas.

Segundo Martin Bonamino, pesquisador do Instituto Nacional do Câncer (Inca), a identificação do marcador adiciona mais um sinal no caminho para encontrar essas células e usá-las clinicamente. Embora não considere que a descoberta vá mudar terapias a curto prazo, ele vislumbra que, a médio prazo, muitas novas alternativas possam surgir.

¿ No futuro, em terapias mais refinadas, essa caracterização será muito importante ¿ avalia Bonamino. ¿ O CD49f pode dar uma medida mais real se a população de células usada em um transplante será capaz de repovoar o sistema sanguíneo. Além disso, os produtos saídos de citômetros de fluxo não são válidos para usos clínicos. Para isso, só podemos fazer uma seleção com manipulação de anticorpos, então é fundamental termos um marcador específico para conseguirmos ¿puxar¿ apenas as células-tronco do sangue que interessam.

Para Bonamino, tendo em mãos as HSCs ¿puras¿, os cientistas poderão finalmente entender o que faz essas células tão poderosas.

¿ Poderemos estudar toda sua biologia e identificar as proteínas que lhes dão essas características especiais.