Título: Justiça só enquadra os peixes pequenos
Autor: D'Elia, Mirella
Fonte: Correio Braziliense, 04/08/2009, Brasil, p. 10

Estudo mostra que condenações recaem principalmente sob réus primários e traficantes menores

Latas de merla apreendidas este ano em Ceilândia: de acordo com a pesquisa, no DF, só esse tipo de droga levou a alguma condenação Dida Sampaio/AE - 26/5/09 O ministro da Justiça, Tarso Genro, apresenta o levantamento amanhã

Antes mesmo de ser lançada, uma pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade de Brasília (UnB) já está levantando polêmica. O estudo analisou como os juízes brasileiros estão aplicando, na prática, a nova lei antidrogas (Lei nº 11.343), que entrou em vigor em 2006. E constatou: quem vai para a cadeia e é condenado pela Justiça, na maioria das vezes, é o pequeno traficante, réu primário e com bons antecedentes. Ele é capturado sozinho e com uma pequena quantidade de droga. Um dado chamou a atenção dos especialistas: somente no Distrito Federal a comercialização de merla levou a condenações. No Rio, o tráfico desse tipo de droga não apareceu nas estatísticas.

¿Investigamos como a pena estava sendo aplicada. Os achados desmistificam a figura do grande traficante. Os mais vulneráveis são os pequenos¿, disse a professora da UFRJ Luciana Boiteux, uma das coordenadoras da pesquisa.

Patrocinado pelo Ministério da Justiça, o levantamento vai ser apresentado ao público durante evento no Rio de Janeiro, amanhã, pelo próprio ministro Tarso Genro. Equipes coordenadas por Luciana Boiteux e pela professora da Universidade de Brasília (UnB) e subprocuradora-geral da República Ela Wiecko passaram um pente-fino em 730 sentenças judiciais dadas por juízes do Rio e de Brasília desde que a lei entrou em vigor, em 7 de outubro de 2006, até 31 de maio de 2008. Também foram analisados acórdãos do Tribunal de Justiça do DF, do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF). Com isso, foi possível fazer um mapeamento da aplicação da lei em todas as instâncias.

Recém-formado em direito pela UnB, Pedro Felipe de Oliveira Santos participou do trabalho, à época como estudante. Segundo ele, em todos os casos checados nas Cortes superiores, os presos permaneceram atrás das grades mesmo sem ter uma condenação definitiva. ¿Isso arrepia qualquer defensor de direitos humanos¿, disse ele, que fez seu trabalho de conclusão de curso sobre o tema. ¿O sistema penal não está conseguindo capturar os médios e grandes traficantes. Os `profissionais¿ estão à solta¿, disse o recém-formado, que pretende aprofundar os estudos na área.

Rigor

Para a professora da UFRJ, o rigor da nova lei ¿ que prevê pena mínima de 5 anos em caso de condenação por tráfico ¿ acaba levando os magistrados a dar sentenças mais pesadas. ¿A lei não diferencia as situações como deveria e prevê penas muito altas. Consequentemente, o juiz não tem como sair desse `roteiro legal¿¿, afirmou Luciana. Segundo ela, foi possível constatar, durante a pesquisa, que muitos juízes estão decidindo não aplicar um dispositivo (1)previsto pelo texto legal, que permite reduzir a pena do condenado. ¿Já essa é uma decisão do juiz¿, completou.

Por outro lado, o juiz criminal Nino Toldo disse que é adequada a fixação de penas previstas pelas regras atuais. Toldo, que é vice-presidente da Associação de Juízes Federais (Ajufe), acrescentou que, na Justiça Federal, a redução do tempo de prisão tem sido aplicada (leia a opinião do especialista).

Diretor executivo da ONG Viva Rio, Rubem César Fernandes classificou a nova lei como ¿ambígua¿. ¿Ela ficou a meio caminho entre as políticas do proibicionismo e as de redução de danos. Acaba por confundir a todos os interessados ¿ os jovens, as famílias, a polícia, a Justiça¿, destacou o antropólogo. ¿O Brasil precisa encarar o problema e buscar soluções consistentes. Estudar o caso de Portugal, que descriminalizou o consumo de todas as drogas em 2001 e tem obtido bons resultados, não só na redução dos crimes associados à venda de drogas, como na redução do consumo entre os jovens¿, acrescentou.

1 - BONS ANTECEDENTES O artigo 33 da Lei nº 11.343 prevê de 5 a 15 anos de prisão por tráfico. O parágrafo 4º do mesmo artigo diz que a pena pode ser reduzida de um sexto a dois terços se o réu for primário, tiver bons antecedentes e não se dedicar a nenhuma atividade criminosa ou integrar organização criminosa.

Palavra de especialista A redução da pena

A Lei n° 11.343, de 2006, que, dentre outras coisas, estabeleceu normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas, é adequada quanto à fixação de penas para o crime de tráfico de drogas. O art. 33 dessa lei estabelece diversas condutas que caracterizam o tráfico e prevê, como pena, reclusão de 5 a 15 anos.

Como forma de mitigar esse rigor, a lei permite ao juiz reduzir a pena, de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique a atividades criminosas nem integre organização criminosa.

Juízes federais têm utilizado essa causa de diminuição da pena em casos de tráfico transnacional quando se trate das chamadas ¿mulas¿, ou seja, pessoas cooptadas para transportar a droga.

Nino Toldo, vice-presidente da Ajufe