Título: Que país é esse?
Autor: Kappen, João Bernardo de lima
Fonte: O Globo, 25/02/2011, Opinião, p. 7

Osite Youtube divulgou na semana passada um vídeo estarrecedor filmado dentro da Corregedoria de Polícia Civil de São Paulo, onde uma policial mulher que está sendo investigada por corrupção foi algemada e despida à força por um policial homem.

Algemada, aos gritos e pedidos de ajuda, uma mulher desesperada tem sua calça abaixada, para o deleite dos voyeurs que assistem passivamente à cena de horror.

Esta trágica cena é um sintoma dos males de uma sociedade que ainda não conseguiu se livrar de uma cultura de anos de autoritarismo e barbárie.

Além da questão moral ¿ um homem algemando uma mulher para lhe tirar a roupa à força ¿ que representa a aniquilação total da condição de mulher e reflete a necessidade, por parte da autoridade masculina do policial, de impor à figura feminina uma submissão resultante de uma visão canalha de uma suposta inferioridade de gênero, há outro ponto que deve ser lembrado: a banalidade das violações aos direitos e garantias individuais do ser humano no Brasil.

A primeira reação do governador de São Paulo foi dizer que estava espantado com o fato de que ¿um documento interno da polícia acabou indo a exposição pública¿.

Ou seja, deixou claro que sua preocupação não estava no fato de que uma mulher foi constrangida ilegalmente e teve sua honra, sua intimidade e sua privacidade violadas dentro das instalações da Corregedoria da Polícia, mas sim no vazamento de informações.

A divulgação do vídeo ao menos serviu para fazer com que o governador determinasse o afastamento de todos os policiais da Corregedoria que presenciaram a violência, já que o Ministério Público e a Justiça paulista já se manifestaram no sentido de que a atitude foi na medida certa.

Antes de tirar à força a calça da mulher que estava sendo investigada, o policial diz claramente no vídeo que sua atitude estaria amparada pelo Código de Processo Penal, no artigo (244) que trata da busca pessoal quando há fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de objeto que constitua corpo de delito, já que havia a desconfiança, por parte dos policiais corregedores, de que a mulher estava escondendo um dinheiro que seria fruto do crime de corrupção investigado pela Corregedoria.

Paradoxalmente, o argumento da legalidade é usado para justificar o mais variado cardápio de violações aos direitos e garantias individuais.

Estando ou não escondendo objeto fruto de crime, sendo ou não o mais cruel dos criminosos, o ser humano conquistou ao longo de sua difícil existência o reconhecimento de direitos mínimos para a sobrevivência da humanidade.

Assim é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que, segundo Fábio Konder Comparato, representa a culminância de um processo ético que levou ao reconhecimento da igualdade essencial de todo ser humano em sua dignidade de pessoa e, para isso, estabelece em seu artigo 5º que ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Assim também diz o pacto internacional sobre direitos civis e políticos, de 1966, no artigo 10: ¿Toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana.¿

A Convenção Americana de Direitos Humanos, aprovada na conferência de São José da Costa Rica, em 1969, à qual o Brasil aderiu em 1992, diz no artigo 5º que toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.

Com este espírito, a Constituição Federal brasileira, de 1988, estabeleceu diversos direitos e garantias fundamentais, tais como o respeito à integridade física e moral do preso e à presunção de inocência.

Portanto, a interpretação que deve se dar ao dispositivo do Código de Processo Penal invocado pelo policial corregedor para justificar a violência usada contra a mulher em São Paulo deve estar de acordo com os princípios, direitos e garantias fundamentais estabelecidos pela Constituição brasileira e pelos pactos e tratados internacionais sobre direitos humanos.

A autoridade policial não tem carta branca da legislação para agir conforme lhe convenha. Enfim, que país é esse que não se revolta com tamanha violência?

JOÃO BERNARDO DE LIMA KAPPEN é advogado.