Título: Boa declaração de intenções
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Fonte: O Globo, 04/01/2011, Opinião, p. 6

Vitoriosa nas urnas de 31 de outubro, Dilma Rousseff soube descer do palanque e reciclar o discurso. Passadas as eleições, não há mesmo mais espaço para arroubos e frases de efeito moldadas apenas para atingir adversários. Em entrevista após a vitória e no pronunciamento feito na diplomação, Dilma já vestira o figurino de quem aguardava para no dia 1º receber a responsabilidade de chefiar um governo cuja missão é administrar um país complexo e, apesar de todo discurso ufanista eleitoral, com sérios problemas a equacionar.

Perante o Congresso, na posse, e no parlatório do Palácio do Planalto, depois da transmissão da faixa, Dilma Rousseff demonstrou entender a dimensão do desafio que enfrentará até 2014. Não basta ter uma folgada maioria formal no Congresso, tampouco herdar uma economia que pode ter crescido acima dos 7,5% no ano passado. Na realidade, o número de votos que detém na Câmara e no Senado pode ser escasso para aprovar certos projetos estratégicos, assim como o fato de o PIB estar em ascensão é menos importante que as pressões desencadeadas pelo crescimento sobre os preços e as contas externas.

Daí a importância de a presidente estender a mão à oposição, minoria no Congresso mas com grande representatividade entre os governos estaduais, considerando o peso econômico e político das unidades da Federação controladas pelo PSDB.

O gesto de Dilma não pode ser meramente protocolar, pois aproximam-se sérios embates políticos capazes de desunir a frente governamental no Congresso. Lembre-se que, não fosse o apoio da oposição, o primeiro governo Lula não teria aprovado o início de uma reforma na Previdência dos servidores, depois deixada de lado, e que precisará ser retomada. E para a oposição há o desafio de entender cada um dos momentos políticos, dentro do respectivo contexto histórico, e ter maturidade para enfrentá-los. Será inaceitável oposicionistas se posicionarem em votações cruciais como parlamentares fisiológicos que apenas apoiam o governo em troca de benesses, sempre dispostos a chantagear o Planalto em busca de benefícios.

Dilma Rousseff se referiu a pontos que são consensuais na sociedade brasileira: erradicação da miséria, melhoria da qualidade da educação e do atendimento no sistema de saúde pública. A questão, por óbvio, passa a ser como enfrentar cada uma dessas batalhas, travadas de forma simultânea. Mais ainda: sem a ajuda de uma conjuntura mundial favorável como a que acompanhou quase todos os oito anos da gestão passada.

Um fantasma que Dilma exorcizou no discurso de posse já assustou o país há poucos anos, quando cresceu no PT o vozerio a favor de um pouco mais de inflação, em troca de um pouco mais de crescimento e empregos - tudo uma perigosa ilusão. Ainda não caíra a ficha em certas mentes petistas que não apenas a inflação fora grande instrumento de concentração de renda a partir do final da década de 70 até sua cauterização, com o Plano Real, em 94, como condenara a economia a um nível de crescimento medíocre.

A crendice sobre a inflação "benigna", se alguém esperava que contaminasse o novo governo, foi soterrada de vez pela presidente ao registrar que "a superação da miséria exige prioridade na sustentação de um longo ciclo de crescimento". O qual exige como condição básica a estabilidade econômica. Fica de uma vez por todas estabelecido que o governo entende ser a inflação o grande inimigo do pobre. Com isso, soterra-se, também, a falsa dicotomia entre "desenvolvimentistas" e os "paranoicos com inflação". Afinal, sem estabilidade não há desenvolvimento. Esta oposição é falsa.

Inexiste, de fato, outro caminho para derrotar a pobreza a não ser o do crescimento sustentável, com a criação de empregos e estímulo ao empreendedorismo. A presidente reconhece que é necessário retirar travas tributárias e de crédito que prejudicam as pequenas e médias empresas, geradoras do maior número de empregos.

O tema remete ao problema da alta carga tributária, embora não tratado diretamente por Dilma. É o peso dos tributos que mantém muita gente na informalidade - metade do mercado de trabalho, por exemplo -, sem direitos trabalhistas, e muitas empresas funcionando no caixa 2. Coerente com o discurso da presidente, o governo, noticia-se, apressa estudos para reduzir o peso de encargos sobre a folha de pagamentos. Pode ser a porta de entrada de uma revisão tributária de que a nação tanto precisa.

Mas para isso também terá de mudar a qualidade dos gastos públicos - tarefa anunciada pela presidente -, bem como a mudança de prioridade das despesas correntes para os investimentos na infraestrutura. Sem contenção de despesas - que não significa corte nominal, mas crescimento abaixo da evolução do PIB -, desonerações necessárias como esta, para incentivar a formalização de empregos e empresas, não serão possíveis.

Neste primeiro ano, Dilma Rousseff deve aproveitar o capital político acumulado para enfrentar os temas mais espinhosos. E a reforma tributária é um deles, visando a orientar o sistema de impostos "pelo princípio da simplificação e da racionalidade", também fator de indução à formalização.

Outra área sensível, em função de ranços ideológicos encontrados no PT e em alguns aliados, é a imprescindível aproximação com a iniciativa privada, para que ela ajude a desatar nós impossíveis de serem cortados pelo setor público. Neste sentido, é também hora - devido ao calendário de grandes eventos internacionais no país e no Rio em particular - para o setor privado entrar na administração de aeroportos.

Criada na ditadura militar para ter apenas 600 funcionários, a Infraero virou um monstrengo com mais de 10 mil empregados, paquidermicamente atolada no pantanal de interesses fisiológicos de certos partidos políticos.

Sabe-se que Dilma Rousseff preferia sanear a empresa e abrir seu capital, na tentativa de recuperá-la. Mas é certo que esta difícil metamorfose não se consumará a tempo de reformas e ampliações de grandes aeroportos acontecerem antes da Copa de 2014 e das Olimpíadas do Rio-2016. Segundo a "Folha de S.Paulo", o novo governo decidiu cortar caminho e entregar ao setor privado a construção e operação de novos terminais em Guarulhos, São Paulo, e Viracopos, Campinas. Confirmada a medida, desanuvia-se o horizonte no planejamento para os dois grandes eventos, em que o transporte aéreo é serviço básico. Outra alternativa é passar mais de 30 aeroportos a estados, para estes os licitarem, ficando os grandes (Rio, São Paulo e Brasília) com a Infraero. Pode não evitar uma vergonha nacional na Copa e Olimpíadas.

Mas o clima de esperança em torno do governo Dilma é mais uma prova de que o continuísmo não faz bem à democracia, atravanca o desenvolvimento de qualquer país. Mesmo sendo um governo do mesmo grupo político do anterior, o fato de assumir um outro presidente areja o ambiente político e abre espaço para novas propostas. O arejamento é tão maior por se firmar no país também o consenso em torno das liberdades amplas estabelecidas na Constituição. Fez bem Dilma Rousseff em repetir o que já dissera: "...prefiro o barulho da imprensa livre ao silêncio das ditaduras."

Com a alternância no poder oxigenam-se políticas públicas, programas de governo. Se juntarmos a afabilidade com que Dilma e Hillary Clinton, secretária de Estado americana, se cumprimentaram, depois da transmissão de cargo, com a referência feita pela presidente, no Congresso, de que é preciso aprofundar o relacionamento com os Estados Unidos e União Europeia, passa a ser razoável apostar numa diplomacia menos sectária, mais responsável e próxima do verdadeiro e tradicional Itamaraty.

Não há reparos a fazer à apresentação das grandes linhas do projeto de governo de Dilma Rousseff. Agora, começa o difícil teste da sua execução.