Título: O mesmo dinheiro, realidades diferentes
Autor: Vaz, Lúcio
Fonte: Correio Braziliense, 06/07/2009, Política, p. 2

Levantamento do Correio revela como as regras de distribuição do Fundo de Participação dos Municípios interferem na qualidade de vida da população no país. Carros numa das praças de Anhanguera (GO): serviços de saúde, educação e segurança e até clube aberto à população Bairro da cidade de Goiandira (GO): na periferia da cidade, é possível constatar o processo de favelização do município

Anhanguera (GO) ¿ Com apenas 946 habitantes e 57km², o município de Anhanguera não tem empregos na iniciativa privada. Mas a cidade conta com bons serviços de saúde, educação e segurança pública. Na cadeia, não há presos. Há até estádio de futebol e clube aberto à toda a população, com salão de festas e piscina. Cheia de praças bem cuidadas, sem favelas ou mendigos, a cidade tem alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) ¿ 0,802. Não há desemprego, porque 176 moradores são funcionários da prefeitura. O segredo está no Fundo de Participação dos Municípios (FPM), responsável por 90% da arrecadação de Anhanguera.

Distante 350km de Brasília, o ¿paraíso de Goiás¿ não é um caso isolado. Levantamento feito pelo Correio, a partir de dados oficiais colhidos pelo Tribunal de Contas da União, revela as distorções geradas pelos critérios de distribuição dos recursos do FPM ¿ cerca de R$ 42 bilhões no ano passado. Os municípios pequenos recebem proporcionalmente mais dinheiro do que as grandes e médias cidades. Isso é positivo. Mas o modelo trata de forma igual municípios menores, sejam ricos ou pobres. Outra falha está na extensão da primeira faixa (até 10 mil habitantes). Municípios com 1 mil ou 9,9 mil moradores recebem a mesma cota, embora tenham necessidades diferentes.

Em Goiás, por exemplo, Anhanguera e Cavalcante recebem a mesma cota anual: R$ 3,58 milhões. Isso corresponde a

R$ 3,7 mil para cada cidadão anhanguerino. Em Cavalcante, cada um dos 9,8 mil habitantes tem direito a escassos R$ 362. Com 6,9 mil km² (120 vezes maior que Anhanguera), o município tem IDH de 0,609 ¿ o segundo menor do estado. No menor município do país, Borá (SP), com 804 habitantes, o valor per capita chega a R$ 4,57 mil. Em Euclides da Cunha Paulista (SP), de 9,9 mil moradores, cada cidadão tem direito a R$ 370.

Concentração O cruzamento de dados feito pelo Correio mostra um grupo de 10 municípios de elevado desenvolvimento humano (acima de 0,800) que conta com uma renda per capita média de FPM de R$ 2,4 mil. São municípios pequenos, com extensão média de 120km². Oito deles ficam no Rio Grande do Sul, nas regiões serranas de Alto Taquari e Alto Jacuí.

Lagoa dos Três Cantos, com 1.590 habitantes, tem cota de R$ 3,44 milhões. Isso significa R$ 2,1 mil por cidadão. Com IDH de 0,838, semelhante ao da Hungria, conta com escolas municipais de primeiro e segundo grau, posto de saúde, vans e ambulância para transportar pacientes para cidades próximas nos casos mais graves. A prefeitura fornece maquinários para produtores de leite e criadores de aves. ¿O nível de vida aqui é coisa de Primeiro Mundo¿, afirma o vice-prefeito, Dionísio Wagner (PP). Sem levar em conta o desequilíbrio na distribuição do FPM, ele tem uma explicação própria ¿ e um tanto preconceituosa ¿ para o desenvolvimento: ¿A cultura de querer mais e mais. Aqui, 80% é de descendência germânica. Enquanto em outros lugares tem gente sentada pensando no que fazer, aqui estamos fazendo¿.

Na outra ponta da tabela, aparecem 10 municípios com baixo IDH (média de 0,482), semelhante ao de países como Togo, Nepal e Laos, que recebem um valor per capita médio de R$ 445. São municípios com extensão média de 2,9 mil km² que têm de custear centenas de quilômetros de estradas vicinais, transporte escolar no meio rural, além de ajudar pequenos produtores. Guaribas (PI), que ficou conhecida no lançamento do programa Bolsa Família, tem 4,3 mil habitantes distribuídos em 4,2 mil km². Com IDH de 0,479, conta com renda per capita de FPM de R$ 709. Em Manari (PE), município de IDH mais baixo do país (0,467) ¿ igual ao do Haiti ¿ , a renda per capita é de apenas R$ 408.

O presidente da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), Paulo Ziulkoski, afirma que a distribuição do FPM ainda é mais justa que a repartição de tributos como o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e o Imposto de Renda (IR): ¿A vantagem dele é ser redistributivo. Quanto menor o município, mais recursos recebe. Distorções maiores acontecem em relação ao ICMS¿.

Transferência O FPM é uma transferência de receita da União para os municípios. O repasse, estabelecido na Constituição, está atrelado à arrecadação do Imposto de Renda e do Imposto sobre Produtos Industrializados. A distribuição é calculada de acordo com o número de habitantes, com base em estimativas do IBGE. Como o governo aplicou uma política de renúncia fical para combater o impacto da crise econômica no país, houve uma queda na parcela do FPM.

Área maior para cuidar

Anhanguera e Goiandira (GO) ¿ Em casos de emergência, os doentes de Anhanguera são transportados numa UTI Móvel do município para o hospital de Goiandira, distante 28km. A cidade vizinha tem a mesma cota de Fundo de Participação dos Municípios (FPM), cerca de R$ 3,4 milhões por ano, mas muito mais obrigações. O município tem área de 516km² ¿ 10 vezes maior do que Anhanguera. São 800km de estradas para patrolar e 3 mil mata-burros para conservar. A qualidade de vida em Goiandira é mais baixa. Na periferia, já acontece o processo de favelização.

O secretário de Administração de Goiandira, Silvano da Silva, afirma que também lá o FPM é a principal fonte de arrecadação (60% do total). O ICMS rende R$ 30 mil por mês, mas está todo comprometido com o pagamento de dívidas. A arrecadação do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) não chega a R$ 30 mil por ano. O município é pobre, mas não tem desempregados porque há muito serviço em Catalão, cidade de médio porte distante apenas 17km. Silvano critica o modelo de distribuição de recursos do FPM: ¿Cidades como a nossa estão penalizadas por essa distribuição. Com a mesma renda que outras bem menores, têm que fazer muito mais. Deveria haver distribuição melhor¿.

O prefeito de Anhanguera, Wander da Cunha (PTB), afirma que o FPM representa 90% da receita da cidade. São cerca de R$ 350 mil por mês. O ICMS fica em R$ 22 mil. O município recebe mais R$ 14 mil mensais de Furnas, pela ocupação de parte do território pela represa feita no Rio Paranaíba. O IPTU não rende quase nada. ¿O povo não tem muita cultura de pagar o IPTU. Recebemos de 30%. Só pagam quando vendem a casa.¿ Mas o dinheiro do FPM é suficiente para bancar todos os serviços públicos e ainda manter 176 funcionários, sendo 116 concursados. ¿Como não tem outra fonte, a prefeitura é inchada.¿ No comércio local, há apenas um empregado. Em todas as lojas trabalham apenas familiares dos donos.

Aperto A situação fica mais apertada em Ipameri, cidade de 29 mil habitantes. Segundo dados do Tribunal de Contas da União, o município recebe R$ 7,1 milhões, mas o prefeito da cidade, Wilson Sugai (PMDB), afirma que o valor chega a R$ 11 milhões, o que corresponde a 65% da arrecadação. Seria duas ou três vezes a cota de Anhanguera, mas os compromissos são maiores. Em vez de 130 alunos, a rede municipal de Ipameri atende 3,6 mil. Há mais 3 mil na rede estadual.

O maior problema, talvez, seja a extensão do município: 4.682km². Sugai critica o modelo de distribuição dos recursos do FPM: ¿A reforma tributária deveria resolver isso¿. Mas entende que o maior problema não é o FPM, e sim o ICMS. ¿A cidade compra 100 carros por ano. Onde? Em Goiânia. O ICMS fica lá. A prefeitura gasta 60% da sua arrecadação fora do município. São R$ 500 mil por mês. O imposto fica lá. Enquanto a União não perceber que somos uma Federação, teremos cada vez mais o crescimento das metrópoles.¿ (LV)