Título: Um acordo e muitas dúvidas
Autor:
Fonte: O Globo, 18/05/2010, Opinião, p. 6

Ninguém pode ficar contra gestões diplomáticas para desarmar uma crise internacional com tendência a se agravar. Persistentes, os governos do Brasil e da Turquia superaram o ceticismo geral e fecharam um acordo nuclear com o Irã. Essa é uma das questões mais espinhosas da agenda internacional. Os iranianos resistem a todas as exigências para abrir seu programa à inspeção da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). E isto levanta fundadas suspeitas de que um de seus objetivos é ganhar tempo para desenvolver armas nucleares. Há que se levar em conta, ainda, que o Irã tem testado mísseis de alcance crescente, que podem ser usados para transportar uma bomba atômica a milhares de quilômetros de distância. Ainda assim, o acordo abre portas para a esperança. Seu objetivo é convencer a comunidade internacional principalmente os EUA de que é possível mudar a atitude do Irã sem ter que recorrer a sanções mais duras. Mas ninguém deve comemorar antes da hora. O Irã é conhecido por suas táticas para driblar compromissos. O acordo de agora é muito similar ao proposto pela AIEA em outubro, que Teerã parecia ter aceito, e depois voltou atrás. Segundo o entendimento entre os presidentes Lula e Ahmadinejad, e o premier da Turquia, Erdogan, o Irã concordou em enviar em um mês 1,2t de urânio enriquecido a 3,5% para a Turquia, onde ficará estocado. Em troca, receberá em um ano 120kg de urânio enriquecido a 20% na Rússia e transformado em combustível nuclear na França, para uso num reator de pesquisas em Teerã. O sentido do acordo proposto pela AIEA era retirar do Irã uma quantidade tal de urânio que não deixasse no país o suficiente para que, com enriquecimento a 90%, pudesse ser utilizado para fins militares. Fontes ouvidas pelo New York Times disseram que 1,2t, em outubro, representava cerca de dois terços do estoque iraniano. Como o país continuou enriquecendo urânio, agora corresponde a uma proporção menor. Este é apenas um dos problemas. Outro é que o Irã afirmou que continuará aumentando seu estoque de urânio enriquecido. A reação da comunidade internacional foi de cautela, com razão. Países europeus chamaram a atenção para a necessidade de um compromisso do Irã com a AIEA (que será notificada do acordo). A Casa Branca considerou o acordo vago, pouco convincente e disse que o Irã segue violando resoluções da ONU, motivo pelo qual continuará negociando novas sanções. Uma das possíveis consequências da ação de Lula e Erdogan é tornar mais difícil para os EUA convencer Rússia e China da necessidade de impor restrições ao Irã. As sanções são adotadas pelo Conselho de Segurança da ONU e os dois países têm poder de veto. Poderão alegar que, agora, com um acordo, não cabe impor sanções. Brasil e Turquia estão no CS como membros temporários. Não têm poder de veto, mas poderiam votar contra pelo mesmo motivo que Rússia e China, o que diminuiria muito a possibilidade de punir o regime iraniano por brincar de gato e rato com a comunidade internacional. Brasil e Turquia mostraram disposição para correr riscos e aumentar seu cacife internacional. E o presidente Lula tem mais um argumento passível de exploração política num ano de eleições.