Título: Ganância futura
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 17/03/2010, O País, p. 4

Ganância futura

Este nosso arremedo de Guerra de Secessão, com choro e ranger de dentestipicamente tropicais, pode se transformar em uma crise política gravese o governo do Estado do Rio não agir seriamente, como não fez atéagora.

Não ajuda nada o comentário sarcástico do deputado IbsenPinheiro, autor do projeto que reduz drasticamente o pagamento deroyalties aos estados produtores de petróleo, dizendo que estadoprodutor no máximo tem uma vista para o mar, que é muito privilegiada.

Poroutro lado, vamos e venhamos, cassar a Medalha Tiradentes dada aodeputado gaúcho, considerandoo persona non grata ao estado, beira oridículo.

Melhor seria que a Câmara dos Vereadores zelasse pelaescolha de personalidades que recebem a condecoração, valorizando-a, emvez de distribuí-la a torto e a direito.

Não se discute quecortar bruscamente o pagamento dos royalties do petróleo para o Rio deJaneiro, quase inviabilizando a economia do segundo maior estadobrasileiro, coloca em risco o conceito de Federação, incluindo umcomponente deletério no relacionamento entre os estados.

Nem sempre a maioria pode tudo.

Maso fato é que a posição do Rio não é tão segura assim como querem fazercrer as autoridades fluminenses, e é preciso mais do que protestos paraque se chegue a bom termo na negociação.

A alegação de que oprojeto de lei fere o artigo 20 da Constituição, que prevê acompensação aos estados produtores, não é tão irrefutável assim.

Segundo o caput do artigo 20, entre os diversos bens da União, estão os recursos naturais da plataforma continental.

Jáo parágrafo 1º do mesmo artigo estabelece que: É assegurada, nostermos da lei, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, bemcomo a órgãos da administração direta da União, participação noresultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursoshídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursosminerais no respectivo território, plataforma continental, marterritorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira poressa exploração. Há interpretações desse texto que entendem que osestados e municípios têm direito à compensação ou participação pelaexploração apenas nos respectivos territórios, e a União pelaexploração na respectiva plataforma continental, mar territorial ouzona econômica exclusiva.

Entre 1953 e 1968 só havia indenização da Petrobras aos estados e municípios pela produção em terra.

A União nada recebia dessa produção.

Apartir de 1969, a União passou a ser indenizada pela produção marítima.As participações especiais pela exploração de petróleo existem apenasdesde 1997, com a Lei do Petróleo, sancionada nove anos depois daConstituição.

A partilha de royalties de mar com estados emunicípios é de antes da Constituição, de uma legislação de 1985. Essalegislação estabeleceu o critério de confrontação com base em projeçõespara definir a distribuição dos royalties para estados e municípios,que até aquela data eram apenas da União.

No entanto, mesmo quese interprete, como fazem o governo do estado do Rio e do EspíritoSanto, que a União deve compensar estados e municípios pela exploraçãodo petróleo em altomar, a forma de compensação depende de legislaçãoordinária, e é por isso que ela está sendo alterada por um projeto delei complementar, e não por emenda constitucional.

Não hánenhuma obrigatoriedade constitucional de repassar 60% a estados emunicípios, como ocorre hoje, nem de privilegiar nessa distribuição osestados e municípios confrontantes, conceito que sequer aparece naConstituição.

Os especialistas que são favoráveis à mudançaressaltam que a utilização de projeção marítima para delimitação daplataforma entre os estados para fins de distribuição dos royalties nãotorna a plataforma continental território de estado A ou B.

Bastaa legislação alterar o tipo de projeção utilizada (ortogonal porparalela) para alterar o resultado da divisão da plataforma continentalentre os estados.

É o caso do campo de Tupi, que, pelasprojeções ortogonais, pertence à área do Rio de Janeiro, mas comparalelas pertenceria à área de São Paulo, como aliás queria o senadorAloizio Mercadante, para favorecer seu estado.

A infração acontratos seria apenas aos que já estão em andamento, mas mudançasfuturas podem ser feitas para renovação dos atuais contratos e para osnovos, como aliás pode ser alterada a legislação fiscal, desde quenegociada no Congresso.

Uma reforma tributária, se chegasse abom termo, alteraria a cobrança de tributos sem que pudesse serconsiderada uma quebra de contrato.

O problema para os estadosprodutores é que a maioria esmagadora dos estados chegou a um consensona Câmara sobre o pagamento dos royalties do petróleo.

Como nãohá nenhuma razão para se mudar os critérios de interpretação dalegislação que está em vigor, a não ser a ganância por um tesouro queainda está para ser explorado, é lícito classificar de covardia aalteração imposta pela maioria.

Mas será preciso muita negociação para que os estados produtores não saiam desse episódio com um prejuízo irrecuperável.

Ogovernador Sérgio Cabral, que conduziu muito mal a negociaçãocongressual, irritandose excessivamente no primeiro momento e chegandoàs lágrimas quando o estado foi atingido pelo corte de recursos, temque tomar cuidado para que a passeata de hoje não se transforme em umtiro no pé.

Nos bastidores, é preciso que o governador seempenhe em negociações realistas, provavelmente abrindo mão de algumavantagem futura para garantir o que o estado já tem, e não confie tantona suposta amizade que o presidente Lula e sua candidata Dilma Rousseffdevotam ao Rio e a ele pessoalmente.