Título: Ajuda ao Haiti chega em migalhas
Autor: Scofield Jr., Gilberto
Fonte: O Globo, 19/01/2010, O Mundo, p. 23

Gargalo na distribuição impede que doações alcancem a maioria dos 3 milhões de desamparados

Enviado especial

¿ PORTO PRÍNCIPE

Uma semana após o terremoto que disparou a maior crise humanitária das seis décadas de operação da ONU, notícias de novas doações não param de chegar ao Haiti. Nas ruas, porém, ampliamse os sinais de que a falha na logística de distribuição de suprimentos ¿ a conta-gotas, diante da dimensão da catástrofe ¿ está impedindo alimentos, água e remédios de chegarem até a maior parte dos cerca de três milhões de haitianos desamparados. A desorganização se reflete no intenso fluxo de milhares de refugiados rumo às zonas rurais ¿ na esperança de encontrar a comida e o abrigo que faltam na capital; no crescimento de episódios de violência e saques, e na disparada dos preços de água e comida oferecidos em mercados locais. Ontem, o ex-presidente dos EUA Bill Clinton, enviado especial da ONU, chegou a Porto Príncipe, e representantes de 30 países reuniram-se na vizinha República Dominicana para discutir saídas como a criação de um corredor terrestre de 130km entre a dominicana Barahona a Porto Príncipe, a fim de agilizar o escoamento de suprimentos.

A distribuição desorganizada começa a comprometer a rede de infraestrutura do país. Desde ontem, cansados de esperar por uma ajuda que tarda a chegar, muitos haitianos começaram a furar canos do sistema público e e de abastecimento das casas destruídas para ter acesso a água, tanto para consumo quanto para higiene. Cenas de pessoas tomando banho em chafarizes de canos furados, enquanto outras esperam com baldes e caçambas, se multiplicaram pela capital.

Número de voos triplica no aeroporto

O aeroporto do país, sob operação dos EUA, nunca viu dias de movimento tão intenso e caótico. Diariamente, tem recebido cerca de cem voos ¿ bem acima da média de 35 anterior ao devastador terremoto. Muitas aeronaves, porém, ainda precisam esperar até um dia para aterrissar, e não faltam divergências sobre os critérios de hierarquia de pousos. Gerente de operações dos Médicos Sem Fronteiras no Haiti, Benoît Leduc criticou o desvio do pouso de três aviões de carga do Haiti para a República Dominicana, atrasando o atendimento.

¿ Estamos dois dias atrasados nas operações por causa dessa dificuldade no acesso.

Claro que o aeroporto é pequeno.

Mas é, claramente, uma questão de se definirem prioridades ¿ afirmou.

Ontem, o Programa Mundial de Alimentos da ONU (PMA) anunciou um acordo com autoridades dos EUA para priorizar o pouso de voos que trazem ajuda. Segundo a escala de urgência, primeiro vêm os aviões carregados de água, seguidos pelos de equipamentos, de comida e de equipes médicas e remédios.

Ontem, o PMA pretendia levar 200 toneladas de alimentos a 95 mil pessoas. Nos pontos de distribuição, houve tumulto na disputa por comida.

Helicópteros da Marinha dos EUA também arremessaram kits com refeições prontas e água, suficientes para abastecer apenas poucas pessoas. Nos últimos dias, a notícia de que equipes de resgate se esforçavam para retirar cerca de 50 sobreviventes sob escombros do Supermercado Caribenho, um dos maiores da capital, atraiu centenas de haitianos.

Eles quase impediam os trabalhos de resgate, na esperança de que os buracos escavados pudessem ser usados para os habitantes entrarem e pegarem de comida a velas (para iluminar as casas sem eletricidade) e pastas de dente, um dos itens mais disputados pelos haitianos, que esfregam o produto abaixo do nariz para encobrir o cheiro dos corpos em decomposição.

A polícia local foi obrigada a isolar a área para evitar saques.

¿ Não temos a capacidade de consertar esta situação. O Haiti precisa de ajuda... os americanos são bem-vindos.

Mas onde estão? Precisamos deles nas ruas conosco ¿ desabafou o policial Dorsainvil Robenson.

A escassez de combustível, comida e água continua a provocar escaramuças entre uma população aflita por alimentos, o que força a intervenção da polícia local ou das forças militares, com tiros para o alto. Mas esses episódios já foram menores ontem, devido ao aumento das patrulhas providenciado pelo general Floriano Peixoto, chefe das forças da ONU no Haiti.

¿ A prioridade é acelerar a ajuda humanitária e reforçar o policiamento para não deixar que o clima de nervosismo resulte num aumento da violência ou da tensão entre a população ¿ afirmou o porta-voz da base militar brasileira, coronel Alan Santos.

Ainda assim, a vida começa a voltar ao normal em Porto Príncipe ¿ dentro do que é possível num cenário póstragédia, no qual autoridades confirmaram ontem que 70 mil corpos das possíveis 200 mil vítimas da catástrofe já foram enterrados. As telecomunicações se estabilizaram parcialmente, com o funcionamento de celulares e internet. Pequenos comércios reabriram ontem suas portas, sob forte policiamento ou atrás de grades. Foi o caso do Supermercado Sunrise, em CanapeVert, protegido por um policial armado, que abriu para vender artigos de higiene e objetos para a casa. Nada de água e comida. Em outro mercado, porém, os preços de víveres dispararam: uma garrafa pequena de água, por exemplo, era vendida por US$ 6.

A prolongada falta de luz à noite é outro foco de tensão, já que muitos moradores que tiveram a sorte de ter suas casas intactas, apesar do terremoto, começam a temer a ação de bandidos, que preferem agir à noite para driblar as patrulhas da ONU.

¿ Não conseguimos dormir tranquilos ¿ disse Dominique Joseph, morador de Cité Militaire, bairro em frente à favela Cité Soleil.

Ontem, os EUA anunciaram que 2 mil fuzileiros se juntariam a seus mil soldados em terra no Haiti. E, diante do caos, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, recomendou ao Conselho de Segurança um acréscimo de 1.500 policiais e 2 mil soldados à missão de paz, por seis meses. O ex-presidente Bill Clinton desembarcou no Haiti acompanhado da filha, Chelsea, e visitou o hospital-geral do país, lotado com 1.500 pacientes. Clinton prometeu que sua fundação doará remédios e um gerador de energia para que médicos possam trabalhar à noite.