Título: Bárbaras utopias
Autor: Bloch, Arnaldo
Fonte: O Globo, 24/02/2008, O Mundo, p. 39

Filmado nos últimos 18 anos, documentário de Sílvio Tendler sobre sonhos e frustrações de sua geração encerra-se junto com renúncia de Fidel

o artigo ¿A alma do homem sob o socialismo¿, de 1891, Oscar Wilde proclama: ¿Um mapa do mundo que não inclua Utopia não é digno de se espiar, pois ignora o único território em que a Humanidade sempre atraca, partindo, em seguida, para uma terra ainda melhor¿. O escritor irlandês completa o raciocínio adiante, com um aforismo tão difícil de provar quanto de contestar: ¿O progresso é a realização de utopias¿.

Na semana em que se encerra um dos últimos capítulos da história das utopias de nossa época ¿ a renúncia de Fidel Castro ¿ é fácil observar que, se nenhuma utopia, naturalmente, se realizou, todas moveram o mundo e influenciaram a maneira de pensá-lo. Ora nos ensejos de paz e justiça, ora transmutadas em guerra e barbárie. Como num jogo do destino, a saída de Fidel ocorre num momento em que o debate pré-eleitoral americano se vê arejado por uma avalanche de mensagens renovadoras. Utópicas?

No olho deste furacão de coincidências e paradoxos, o cineasta Sílvio Tendler rodou mundo e construiu o mosaico de imagens e opiniões que compõem ¿Utopia e Barbárie¿, definido por ele como um road movie histórico.

¿ Viajei nas lutas que se travaram na segunda metade do século passado, buscando as raízes dos movimentos político-culturais que eclodiram em 1968, quando eu tinha 18 anos.

Dezoito anos, por sinal, transcorreram da primeira tomada do filme, em 1990, até dias atrás, quando, motivado pelo ato do ditador cubano, decidiu fechar a tampa cronológica da obra, que pretende lançar em novembro, depois de uma última bateria de viagens.

¿ Naquele momento a geração que sonhou com utopias despertava com pesadelos de frustração: Thatcher e Reagan davam as cartas, a direita comemorava a queda do muro e, no Brasil, escolhíamos Collor. Sedento de juntar os cacos, pus o pé na estrada.

Não faltou bagagem: estivera várias vezes em Cuba, vivera no Chile de Allende e em Paris pós-68, fora a Portugal durante a Revolução dos Cravos. Na origem da inquietação, a lanterna de Castro lhe aparecera aos onze anos, quando morava numa cobertura de classe média-alta em Copacabana.

¿ Uma noite, ouvi a turba lá embaixo gritar slogans antiamericanos e dar vivas à revolução. Fidel, no poder aos 30, era o modelo perfeito para jovens corações ávidos por moldar o mundo.

Muitos de sua geração se consumiram nas trevas da Ditadura, mas, sem fôlego de guerrilheiro, Sílvio elegeria como forma de luta as imagens e os sons. Essa, aliás (a luta pela arte), uma das mais fortes vertentes do filme.

¿ Espero que resolvamos esse conflito pela cultura e não pela guerra ¿ diz, numa pujante seqüência, o palestino Zacharia Zubeidi, líder das Brigadas dos Mártires de al-Aqsa, que, depois de estudar teatro com um ator meio-judeu, passou a pregar que a arte é arma mais eficaz que seu rifle Kalashnikov.

No Vietnã, Sílvio ouviu, em 2003, o General Giap, historiador que se fez soldado e sagrou-se um dos grandes generais do século. Faltavam 15 dias para expirar o ultimato de George W. Bush ao Iraque e Giap deu seu parecer.

¿ Você sabia que estamos entrando no milênio da paz?

O filme ainda não está montado, mas imagine o efeito de um general vietnamita profetizar a paz em meio a fotogramas de crianças nascendo defeituosas até hoje por conta da herança do agente laranja; ou dos labirintos dos túneis de Cuchi, nos subúrbios de Ho Chi Minh, antiga Saigon.

Tomadas tão fortes quanto as que mostram o japonês Shin Pei, ¿caçador¿ de sobreviventes de Hiroshima, com indivíduos de corpos destruídos e almas ainda em chamas, consumidas por tétricas memórias, declarar:

¿ Trabalhar com a experiência vivida nos dá a noção real da memória.

¿Memória¿ é outra palavra-chave no caleidoscópio de ¿Utopias¿:

¿ O revisionismo histórico é planejado para que, daqui a décadas, as pessoas vejam os filmes dos campos de concentração e achem que se trata de ficção ¿ dispara, na tela, Andre Heinrich, ex-assistente de Alain Resnais.

Ainda mais pessimista é a escritora e ex-ativista americana Susan Sontag:

¿ Tendemos mais a lembrar de imagens do que de histórias, e as memórias nos são ensinadas. Sedimentá-las é mais complexo do que se prega.

Sílvio foi também à Itália, onde conversou com Francesco Rosi, pai do neo-realismo italiano, e Gillo Pontecorvo, autor da ¿Batalha de Argel¿. Ali investigou a barbárie do assassinato de Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas. No Uruguai, encontrou no escritor Eduardo Gaelano um olhar mais esperançoso:

¿ O direito de sonhar e lidar com outro mundo (a utopia é isso) é o mais importante direito humano. E não figura em nenhuma declaração da ONU. Por mais completos que estejamos, não estamos terminados, e podemos ser desfeitos e refeitos de outra maneira, para que o mundo seja a casa de todos e não um campo de concentração. E para que possamos ver o próximo não como uma ameaça, mas como uma promessa.

Afinal, como disse Fidel na ONU em 1979, ¿as bombas poderão matar os famintos, os doentes, os ignorantes, mas não podem matar a fome, as doenças, a ignorância, ou a justa rebeldia dos povos...¿ Fidel e seu regime cometeram suas barbaridades, daí tal pensamento ter suas notas anacrônicas. O que não o torna menos dotado de rigor lógico. Num documentário da cineasta americana Estela Bravo, Fidel, por sinal, admite que os tempos são outros e as revoluções serão diferentes. Como serão?

Militante, como o ator judeu e o ex-guerrilheiro palestino, do ato artístico como opção, Sílvio situa seu libelo:

¿ O documentário é o último refúgio do cinema autoral. A ficção está acossada pela indústria. Hoje, antes de chegarem à tela, os filmes são moldados pelo diretor com base no ¿gosto do público¿. Acusam os documentários de serem didáticos. Ou parciais. Como escreveu o crítico Sérgio Augusto, ¿imparcial só a câmera desligada¿. Aos 58 anos, aponto então minha câmera, minha arma, para as velhas e novas utopias.