Título: O suave poder da Europa
Autor: Stiglitz, Joseph
Fonte: O Globo, 06/04/2007, Opinião, p. 7

Em alguns setores, o pessimismo, lamentavelmente, dominou as recentes celebrações do 50º aniversário da União Européia. Inquietações sobre o futuro da UE são naturalmente compreensíveis, especialmente dada a incerteza sobre os esforços para reviver o Tratado Constitucional. Mas o projeto europeu tem sido um enorme sucesso, não apenas para a Europa, mas também para o mundo.

Os europeus não devem ficar abalados pelas comparações entre o crescimento do Produto Bruto na Europa e, por exemplo, nos Estados Unidos. É claro que a Europa enfrenta desafios maiores no aperfeiçoamento de sua união econômica, inclusive a necessidade de reduzir o desemprego e dinamizar a economia. Mas embora o PIB per capita cresça nos EUA, a maioria dos americanos está em situação pior hoje do que há cinco anos. Uma economia em que ano após ano a situação da maior parte de seus cidadãos se deteriora não é um sucesso.

Mais importante, o êxito da UE não deve ser medido por aspectos particulares de legislação e regulação, ou mesmo pela prosperidade trazida pela integração econômica. Afinal, a motivação básica dos fundadores da UE era a paz duradoura. Integração econômica, esperava-se, levaria a maior compreensão, com base no sem-número de interações que inevitavelmente decorreriam do comércio. O aumento da interdependência tornaria impensável o conflito.

A UE realizou esse sonho. Em nenhuma outra parte do mundo vizinhos vivem mais pacificamente e as pessoas se deslocam mais livremente e com maior segurança do que na Europa, em parte por causa de uma nova identidade européia, que não tem a ver com nacionalidade. É um exemplo que o mundo deveria imitar ¿ um caso de direitos e responsabilidades compartilhadas, inclusive da obrigação de ajudar os menos privilegiados. Também sob este aspecto a Europa serve de guia: ninguém proporciona mais ajuda aos países em desenvolvimento (e o percentual do PIB é acentuadamente maior do que no caso dos EUA).

O mundo tem enfrentado um período difícil nos últimos seis anos. O compromisso com o multilateralismo foi contestado e direitos garantidos em convenções internacionais, como a Convenção contra a Tortura, foram revogados. Muito se aprendeu, inclusive o perigo do hubris e os limites do poder militar e a necessidade de um mundo multipolar.

A Europa, com mais gente do que qualquer país isolado, exceto China e Índia, e o maior PIB do mundo, deve tornar-se um dos pilares centrais desse mundo, projetando o que já se classificou de ¿poder suave¿ ¿ o poder e influência das idéias e do exemplo. Com efeito, o sucesso da Europa deve-se em parte a sua promoção de um conjunto de valores que, embora essencialmente europeus, são ao mesmo tempo globais.

A mais fundamental dessas teses é a democracia, entendida como implicando não apenas eleições periódicas, mas também participação ativa e significativa na tomada de decisões, o que exige uma sociedade civil engajada, normas de forte liberdade de informação e uma imprensa vibrante e diversificada, que não seja controlada pelo Estado ou por uns poucos oligarcas.

O segundo valor é a justiça social. Um sistema econômico e político deve ser julgado pelo grau que os indivíduos podem crescer e realizar seu potencial. Como indivíduos, somos parte de um círculo sempre em expansão de comunidades, e só podemos realizar nosso potencial se vivermos em harmonia uns com os outros. Isso, por sua vez, requer um senso de responsabilidade e solidariedade.

A UE demonstrou poderosamente este senso com sua ajuda aos países europeus pós-comunistas. A transição do comunismo para o mercado não tem sido fácil, mas a generosidade sem precedentes da Europa tem valido a pena: os países que entraram na UE tiveram melhor desempenho que todos os outros, e não só graças ao acesso aos mercados europeus. Ainda mais importante foi a infra-estrutura institucional, inclusive o compromisso com a democracia e o vasto arcabouço de leis e regulamentos que costumamos tomar como pontos pacíficos.

A Europa teve sucesso em parte por reconhecer que os direitos dos indivíduos são inalienáveis e universais, e por ter criado instituições para proteger esses direitos. Os EUA, em contraste, foram cenário de um ataque maciço a esses direitos, inclusive o de habeas corpus ¿ o direito a contestar detenção ante um juiz independente. Traçaram-se sutis distinções, por exemplo, entre os direitos de cidadãos e não-cidadãos.

Hoje, somente a Europa pode falar com credibilidade sobre a questão dos direitos humanos universais. Em nome de todos nós, a Europa deve continuar a se manifestar ¿ com mais vigor ainda do que no passado.

Da mesma forma, enquanto o projeto europeu visa à harmonia de pessoas vivendo juntas em paz, também devemos viver em harmonia com nosso ambiente ¿ o mais escasso de todos os nossos recursos. Também nessa área a Europa assumiu a liderança, especialmente no que se refere ao aquecimento global, mostrando que o egoísmo mesquinho pode ser posto de lado em prol de um objetivo comum.

No mundo de hoje há muito coisa funcionando mal. Enquanto a integração econômica ajudou a alcançar um conjunto maior de metas na Europa, em outras partes a globalização econômica contribuiu para alargar o fosso entre ricos e pobres dentro dos países e entre países ricos e pobres.

É possível um outro mundo. Mas na sua busca cabe à Europa assumir a liderança.

JOSEPH STIGLITZ é economista. © Project Syndicate.