Título: Ato de anarquia
Autor: Noblat, Ricardo
Fonte: O Globo, 02/04/2007, O País, p. 4

Quem vai pagar a conta do mais recente e desastroso capítulo do apagão aéreo em cartaz desde outubro? Ele começou na sexta-feira pela manhã, infernizando a vida de milhares de pessoas. E acabou na madrugada do sábado, com o governo posto de joelhos diante de amotinados controladores de vôo. Foi uma rendição ampla, geral e irrestrita.

Militar não pode fazer greve em parte alguma do mundo. Por estas bandas, certo ou errado, a maioria dos controladores de vôo veste farda da Aeronáutica. Pode ter razão em reclamar do número excessivo de aviões que monitora, da precariedade dos equipamentos que maneja e do baixo salário que recebe. Mas não pode cruzar os braços. Está escrito na Constituição que não pode.

Quem atropela a lei está sujeito a ser condenado. Os controladores de vôo atropelaram a lei. "Vamos parar o país", gritou um deles no meio da tarde da sexta-feira na sede do Cindacta 1, em Brasília. E o país começou a parar. A anarquia alastrou-se pelos demais Cindactas que operam em outras capitais. Sargentos desacataram oficiais da Aeronáutica empenhados em restabelecer a ordem.

Se a ninguém é permitido ignorar a lei, é inimaginável que o faça logo a autoridade máxima de um dos poderes da República. Pois foi o que fez Lula sob a desculpa de que a segurança do país corria risco. Partiu dele, que voava para Washington ao encontro de Bush, a ordem para que o ministro Paulo Bernardo, do Planejamento, negociasse com os amotinados em nome do governo. Brasília era então um deserto de autoridades.

O ministro Waldir Pires, da Defesa, voara para o Rio. Quando quis voltar, foi desaconselhado a fazê-lo. Os controladores de vôo não o queriam por perto. E se negaram a autorizar a decolagem do seu avião. A ministra Dilma Rousseff, da Casa Civil, estava em Porto Alegre. O ministro Tarso Genro, da Justiça, por aí. Os demais ministros haviam se mandado para seus estados, como é costume nos fins de semana.

O presidente da República em exercício, o vice José Alencar, descansava em Belo Horizonte. Voou às pressas a Brasília para fazer de conta de que ali havia um governo em pleno funcionamento. De fato, havia um simulacro de governo a poucas horas de se render na sede do Cindacta 1. Coube ao ministro do Planejamento assinar os termos da rendição ditados pelo lado vencedor.

Os controladores de vôo queriam aumento de salário? Terão - a princípio a título de gratificação de emergência. Queriam sair da órbita do comando da Aeronáutica? Sairão. Ainda esta semana, Lula assinará medida provisória criando, dentro do Ministério da Defesa, uma espécie de secretaria especial para se encarregar do tráfego aéreo. Queriam a anulação de punições aplicadas por conta de atos de indisciplina? Elas serão anuladas.

O ministro do Planejamento deixou o Cindacta 1 por uma porta lateral. O comandante da Aeronáutica estava disposto a entrar ali pela porta da frente. Pouco antes ordenara a prisão de 18 controladores. E pretendia estar presente quando a ordem fosse cumprida. Qual o quê... Lula revogou a ordem de prisão. A decisão do comandante foi para o espaço. E ele só não foi junto porque preferiu manter o emprego.

A performance de Lula lembrou os idos de 64, quando o presidente João Goulart passou a mão na cabeça de sargentos em greve. O gesto serviu de senha para que os militares instalassem no país uma ditadura que vigorou por 21 tristes anos. Graças a Deus vivemos tempos bem mais interessantes. Ou não será interessante ver Lula se reunir esta semana com um grupo vitorioso de ex-sublevados?

Depois da reunião, se quiser, poderá escalar alguém para pagar por ele a conta do vexame inaugural do seu segundo governo - talvez o indefeso ministro da Defesa. Chamar o que ocorreu de vexame é generosidade. O certo é defini-lo como um ato de anarquia pilotado pelo próprio presidente. O colapso aéreo deu lugar ao colapso da autoridade.