Título: Contra a maré
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 16/03/2007, O País, p. 4

Entre o que chama de "as dez vacas sagradas que acorrentam o país", o economista Fábio Giambiaggi, do Ipea, destaca um viés anticapitalista que vigoraria em parte expressiva da opinião pública, prejudicando o dinamismo da economia. Essa atitude seria decorrência, segundo o economista, de uma tendência, muito presente na sociedade brasileira, de se proteger sob as asas do Estado, que remontaria à tradição ibérica, tanto nas origens portuguesas no Brasil quanto nas raízes espanholas de diversos países da região. Em seu novo livro, "Brasil, as raízes do atraso", Giambiaggi vê o paternalismo se confrontando com a produtividade, e constata que tradicionalmente setores econômicos politicamente fortes sempre pleitearam (e quase sempre receberam) apoio do governo em forma de reserva de mercado ou subsídios, e a classe média buscava a segurança no emprego público.

Fábio Giambiaggi é muito claro: sabe que está remando contra a maré atual, e admite que, no momento, as idéias que defende no livro não têm o apoio da maioria da população. Mas não foge de temas polêmicos, como acusa os políticos de fazerem. A novidade das últimas décadas, diz Giambiaggi, é que a democracia de massas levou para os pobres e despossuídos essa prática, e hoje ficar "encostado no INSS", receber o benefício do Loas, ou se tornar um cadastrado do Bolsa Família passou a ser uma aspiração de um grupo da população, repetindo "dois velhos hábitos nacionais": o de lutar para conseguir algum benefício do Estado, e ter uma renda sem ter feito um esforço para isso.

Ele cita um velho ditado mexicano que espelharia esse estado de espírito, espalhado pela América Latina e que também reflete uma maneira de fazer política arraigada entre nós: "Os que vivem fora do Orçamento vivem no erro", se referindo, evidentemente, não ao orçamento doméstico, mas ao do Estado.

Esse espírito anticapitalista seria o responsável, segundo Giambiaggi, pela "eterna suspeição" com que são vistos os lucros das empresas. Citando uma frase de Winston Churchill - "É uma idéia socialista a de que lucrar é um vício. Eu considero que vício verdadeiro é ter prejuízo" -, Giambiaggi contrapõe a nossa tradição ibérica à ética anglo-saxã que prevalece nos Estados Unidos, onde os altos lucros das empresas são sempre recebidos com beneplácito, enquanto aqui a suspeição é permanente.

Esse sentimento teria bases morais e religiosas, segundo o economista, associadas à convicção de que a obtenção do lucro se faz em detrimento do bem-estar geral, e de que o lucro seria uma espécie de "pecado". Ele cita vários textos de pessoas como o hoje apagado procurador Luiz Francisco de Souza, que já foi o símbolo do Ministério Público durante o governo Fernando Henrique, até o ex-assessor especial da Presidência, Frei Betto, todos demonizando o lucro.

Até o atual governador da Bahia e um dos expoentes do PT, Jaques Wagner, que comentou assim a invasão da Veracel Celulose por uma facção do MST: "Nada justifica a invasão, mas aquele investimento pôs milhares de pessoas na rua. A maior desordem no Brasil é social, este é o crime que a sociedade comete há séculos". É a mesma linha de pensamento do presidente Lula ao dizer, recentemente, que o crime pode ser "uma questão de sobrevivência".

Fábio Giambiaggi identifica nas críticas às privatizações a convergência entre "a tradição do abrigo estatal, a suspeição quanto às atividades privadas, e o espírito contrário ao lucro". Ele destaca no livro que esse sentimento tomou conta também do Poder Judiciário, que resolveu fazer "justiça social" com suas decisões. Giambiaggi cita dois casos exemplares.

No final do ano passado, um juiz federal concedeu liminar obrigando a Vale do Rio Doce a fazer um repasse mensal para os índios Xikrin, mesmo que não houvesse base legal para tanto, mas apenas o lucro que a companhia obtinha na região. E os votos de juízes do Supremo em uma ação do Estado do Rio Grande do Sul contestando o pagamento de suas dívidas com o governo federal, dentro da renegociação das dívidas estaduais no final dos anos 90.

O governo venceu por 6 a 4, o que mostra a dificuldade da decisão, com alguns juízes se pronunciando contra os acordos, que eram atos jurídicos perfeitos, assinados pelos dois lados, e proibidos de serem renegociados pela Lei de Responsabilidade Fiscal. E, em meio aos votos, alguns juízes ainda se manifestaram contra a privatização de bancos oficiais e a proteção a interesses privados.

Essa atitude do Poder Judiciário, em seus diversos níveis, tem em consequência o fenômeno da "insegurança jurídica", outro entrave aos investimentos no Brasil. Recente estudo do Banco Mundial revelou que 41% das concessões são renegociadas no Brasil, contra uma média de 30% da América Latina; e o governo é responsável por 75% dessas renegociações, contra uma média de 25% na América Latina, uma região que não tem seu forte no cumprimento das leis e contratos, ainda mais no momento em que governantes como Chávez na Venezuela, Evo Morales na Bolívia e Correa no Equador se especializam em rasgar contratos.

Giambiaggi, que é um defensor de reformas estruturais do Estado, especialmente da reforma da Previdência, cita outros nove fatores que, na sua visão, impedem o crescimento do país: 1) o salário mínimo que não é mínimo; 2) a Previdência Social imprevidente: 3) o assistencialismo exacerbado; 4) os direitos dos incluídos; 5) a vinculação preguiçosa; 6) A TJLP esquizofrênica; 7) as transferências temporárias infinitas; 8) a taxação do capital; 9) o protecionismo.

O economista do Ipea acredita ser possível uma meta de crescimento do PIB de 4% a 5% de forma sustentada, mas apenas a longo prazo. Nos próximos três ou quatro anos, ele acha que teremos que superar dois obstáculos importantes antes de ampliar o PIB potencial: a escassez de energia e a falta de investimentos.