Título: AINDA A DEMOGRAFIA
Autor: HELIO AGUINAGA
Fonte: O Globo, 05/08/2006, Opinião, p. 7

OGLOBO publicou na sua edição de 28 de julho ¿A dinâmica demográfica brasileira¿, de ilustres autores dedicados ao estudo estatístico do crescimento populacional brasileiro.

Alegam que aparecem artigos sobre crescimento populacional, planejamento familiar e controle populacional movidos apenas por informações aprendidas há décadas, sem mostrar a menor familiaridade com os dados atuais ou o mínimo respeito pelos muitos estudos realizados por cientistas sociais.

Cabe, antes de tudo, concordar que as cifras percentuais apresentadas estão absolutamente corretas.

Quem leu o artigo ficou com a impressão de que não há mais problema demográfico no país e que se navega, agora, em mar de rosas.

Ocupo-me há mais de trinta anos com o tema, escrevi centenas de artigos sobre o assunto, publiquei livros, fiz parte do Conselho Executivo de ONG internacional centrada em socorrer populações em crise, presidi entidade nacional que congregava programas sobre populações, dirigi programa filantrópico de assistência materno-infantil em 44 comunidades carentes do Rio de Janeiro e muito mais.

Peço desculpas pela digressão pessoal para justificar o meu não-enquadramento nos parâmetros apresentados pelos autores como desinformados e multiplicando bobagens.

A fertilidade baixa atingiu quase o nível dos países desenvolvidos, é verdade, mas não distingue faixa de mais de três milhões de mulheres em idade fértil, pertencentes à camada de pobreza ou miséria absoluta, sem nenhuma informação como planejar sua família e que funcionam como fábrica de miseráveis, cuja taxa de fertilidade gira em torno de 5%. A incidência de gravidez na infância e na adolescência permanece em cifras preocupantes.

Quem viaja pelo interior, principalmente no Nordeste, depara-se com famílias numerosas de dez ou mais filhos sem o chefe, que fora procurar trabalho nos grandes centros, e entregues a mulher sem qualificação para o substituir nesta responsabilidade.

As panelas vazias ou com minguados grãos de feijão para ser dividido entre todos denuncia que a fome zero proposta ao mundo está muito longe de ser alcançada no país.

Não há menção da inversão que sofreu a população neste período: os 80% dos habitantes do campo caíram para 20%, e as cidades, que representavam 20% da população, agora estão com os 80%. O êxodo rural veio reforçar as populações marginalizadas dos grandes centros, vivendo em situação subumana.

Apesar de termos ¿os melhores serviços de saúde do mundo¿, as notícias nos jornais nos mostram hospitais desaparelhados, sem material prioritário, e as filas de pacientes procurando atendimento que se formam de madrugada. Algumas vezes o velório é nas próprias filas de doentes impacientes, que não puderam esperar a sua hora de morrer.

O esforço realizado para erradicação do analfabetismo foi neutralizado pelo aporte constante de novos figurantes. O crescimento do Estado é menor que a demanda, não permitindo equilibrar os recursos com a construção de escolas.

O país pode vangloriar-se de ser o campeão mundial de operações cesarianas no parto, de tal forma que a OMS enviou delegação para averiguar as causas, centradas na grande maioria para ligaduras de trompas.

Ao assumirem a personalidade de Dom Quixote, sugiro aos autores a leitura cuidadosa do livro de Cervantes, em que o Cavaleiro da Triste Figura jura defender os desassistidos, os humilhados e ofendidos.

As estatísticas, muitas vezes, são perversas quando ignoram o significado dos números na qualidade de vida da criatura humana.

Muitos tópicos ainda poderiam ser abordados neste sentido, mas paro por aqui.

Hipoteco minha solidariedade aos milhões de desempregados que buscam trabalho, às heróicas mães sem recursos que se sacrificam para criar os filhos e aos doentes sem lugar para tratarem seus males e cujos sofrimentos e angústias não figuram nas estatísticas.

Ah! Como seria bom se todos os problemas que assolam o país pudessem ser resolvidos nos frios números das estatísticas ou nos discursos fantasiosos dos políticos.

HELIO AGUINAGA é médico.