Título: A QUEM PERTENCE A BOLÍVIA?
Autor: JOSEPH E. STIGLITZ
Fonte: O Globo, 25/06/2006, Opinião, p. 7

Evo Morales é o primeiro índio a ser eleito, democraticamente, chefe de Estado da Bolívia. Grupos indígenas constituem 62% da população boliviana, e os mestiços mais 30%, mas por quinhentos anos os bolivianos têm sido governados por potências coloniais e seus descendentes. Ainda por boa parte do século XX, grupos indígenas não votavam nem tinham voz ativa. O aimara e o quíchua, suas línguas, não eram sequer reconhecidas na condução de negócios públicos. Dessa forma, a eleição de Morales foi um fato histórico.

Mas a nacionalização por Morales dos campos de gás e de petróleo produziu ondas de choque por toda a comunidade internacional. Durante a campanha, Morales deixou clara sua intenção de aumentar o controle do Estado sobre o petróleo e o gás. Mas também deixou claro que não pretendia expropriar a propriedade de empresas de energia ¿ ele queria que os investidores estrangeiros permanecessem no país. (Nacionalizar não significa, necessariamente, expropriar sem fazer as compensações adequadas.) De um modo talvez surpreendente para um político moderno, Morales levou a sério a palavra dada. Genuinamente preocupado com o aumento da renda de seu povo desesperadamente pobre, ele reconheceu que a Bolívia precisa da contribuição dos estrangeiros para crescer, e que isso significa pagar justamente por seus serviços. Mas será que os investidores estrangeiros não estão ganhando mais dinheiro do que seria justo?

As medidas tomadas por Morales têm amplo apoio dos bolivianos, que vêem as privatizações (ou ¿capitalizações¿) realizadas durante o governo do presidente Gonzalo ¿Goni¿ Sanchez de Lozada como roubo. A Bolívia só recebeu 18% do dinheiro apurado! Os bolivianos se indagam por que investimentos de US$3 bilhões deveriam dar aos estrangeiros o direito de ficar com 82% das vastas reservas de gás do país, cujo valor estimado é de US$250 bilhões. Apesar de o montante dos lucros ainda não ter sido completamente divulgado, e de não ter sido feita uma auditoria do verdadeiro valor dos investimentos, parece que, nos termos antigos, os investidores recuperariam tudo o que investiram em apenas quatro anos.

Os bolivianos também se perguntam por que os estrangeiros ficam com todos os benefícios dos altos preços do petróleo e do gás. Não é mais caro extrair petróleo ou gás do subsolo hoje do que quando os preços correspondiam a um terço dos níveis atuais. Ainda assim, empresas estrangeiras de petróleo ficam com 82% do lucro derivado do aumento ¿ no caso do petróleo, isso corresponde a um lucro de US$32 por barril, ou mais. Não admira que os bolivianos se julgassem enganados e exigissem que um novo acordo fosse negociado. Em 2 de maio, Morales simplesmente inverteu as percentagens, até a renegociação dos contratos: as empresas que operam nos maiores campos ficam com 18% da produção. Como parte desse novo acordo, a Bolívia também deve ficar com uma parcela maior quando os preços aumentarem. (A Bolívia pode, é claro, não querer assumir o risco de uma queda de preço, e fazer um acordo transferindo parte do risco para as empresas estrangeiras, em troca de parte maior nos possíveis aumentos.)

Para a maioria dos bolivianos, trata-se de uma questão de justiça. As empresas devem receber um retorno razoável pelo capital aplicado ou é lícito que seus lucros estejam bem acima do normal? A Bolívia deve receber um valor justo por suas reservas? E quem ficará com a maior parte dos lucros advindos dos aumentos dos preços de energia, a Bolívia ou as empresas estrangeiras?

Além de tudo, parece que muitos acordos foram feitos em segredo por governos anteriores ¿ e aparentemente sem a aprovação do Congresso. A rigor, como a Constituição da Bolívia exige a aprovação do Congresso para essas vendas, não está claro se Morales está nacionalizando alguma coisa, pois na realidade os bens nunca foram devidamente vendidos. Quando o tesouro artístico de um país é roubado, não chamamos a sua devolução de ¿renacionalização,¿ porque ele nunca deixou de pertencer ao país.

Como ocorre com muitas privatizações em outros países, há dúvidas sobre se os investidores estrangeiros honraram o acordo. A Bolívia contribuiu nesses empreendimentos conjuntos não apenas com as reservas, mas também com investimentos anteriores. A contribuição das empresas estrangeiras deveria ter sido mais investimentos. Mas terão elas cumprido a sua parte? Estarão sendo usados artifícios contábeis para exagerar o verdadeiro valor da contribuição do capital estrangeiro? Por ora o governo da Bolívia apenas levanta questões, e pondo em movimento um processo para obter as respostas.

O problema da Bolívia é falta de transparência, quando os contratos são assinados e também depois. Sem transparência, é fácil para os cidadãos se sentirem lesados ¿ pois geralmente o são. Quando as empresas estrangeiras fazem um acordo que parece muito vantajoso, geralmente alguma coisa é feita por baixo do pano. No mundo inteiro, empresas de petróleo e de gás devem culpar a si próprias: com demasiada freqüência, elas resistem a apelos para que haja mais transparência. No futuro, empresas e países precisam se entender numa questão básica: é preciso que haja, para parafrasear as memoráveis palavras do presidente Woodrow Wilson, ¿contratos claros, clara e transparentemente negociados¿.

Se os bolivianos não conseguirem um valor justo pela riqueza natural do país, suas perspectivas são sombrias. Mesmo que o façam, precisarão de ajuda, não apenas para extrair suas riquezas, mas também para melhorar a saúde e o nível de instrução de todos os bolivianos ¿ para assegurar crescimento econômico de longo prazo e bem-estar social.

Por enquanto, o mundo deve comemorar o fato de que a Bolívia tem um presidente democraticamente eleito tentando defender os interesses do povo pobre do seu país. É um momento histórico.

JOSEPH E. STIGLITZ é economista. © Project Syndicate.

N. da R.: Verissimo e João Ubaldo Ribeiro escrevem no caderno Copa 2006.