Título: COM A (ALTA) TENSÃO POR UM FIO
Autor: Ramona Ordoñez
Fonte: O Globo, 04/06/2006, Economia, p. 35

Técnicos de Furnas arriscam a vida para consertar linhas de transmissão em que passam até 500 mil volts

A energia elétrica é um bem fundamental que move o mundo. A maioria das pessoas, porém, não imagina que o fornecimento ininterrupto exige que um pequeno exército de trabalhadores fique pendurado, como passarinhos, em linhas de alta tensão por onde passa energia em potências elevadíssimas, de, por exemplo, 500 mil volts.

Esses trabalhadores fazem parte de um seleto grupo de eletricistas especializados em reparos nas linhas de transmissão em operação, ou seja, as que não são desligadas, as chamadas linhas vivas. Durante os minutos em que o trabalhador está na linha, em geral entre 30 e 50 metros de altura, ele faz parte do sistema, porque passa pelo seu corpo a mesma tensão que passa pela linha. Qualquer falha que faça com que tenha algum contato com a terra é fatal.

Em Furnas Centrais Elétricas, a maior geradora do país, há 219 eletricistas superespecializados que se embrenham em locais distantes e matas, percorrendo diariamente quase 20 mil quilômetros de linhas de transmissão com 3.911 torres. O gerente da Divisão de Manutenção Eletromecânica de Furnas, Fábio Gomes, conta que a companhia tem dez departamentos responsáveis pela manutenção. Cada departamento, com cerca de 20 eletricistas, cuida de dois mil quilômetros de linhas. No ano passado, disse, os gastos com manutenção somaram R$33 milhões.

A reportagem do GLOBO acompanhou um dia de trabalho de uma dessas equipes, num dos trechos da linha de transmissão de Cachoeira Paulista, em São Paulo, a Adrianópolis, no Rio. Essa linha traz energia da usina de Itaipu, no Paraná, em uma tensão de 500 mil volts ou 500 quilovolts (kV).

A energia gerada nas usinas é transportada em blocos de tensões pelas linhas de transmissão. Essa energia vai baixando de tensão pelas subestações que atravessa e é fornecida para as distribuidoras, como a Light no Rio, a 138 kV. As distribuidoras, por sua vez, baixam a tensão até 110 volts (no caso do Rio) para as residências.

Valdir Domingues, técnico em linhas de transmissão, trabalha em Furnas há 26 anos e faz reparos em linhas vivas há cerca de 20 anos. Sua missão na linha de Cachoeira Paulista a Adrianópolis era fazer um conserto em um espaçador, peça instalada entre as linhas, para evitar que se toquem.

José Leonardo é gerente de Supervisão de Produção, que comanda a equipe de 23 eletricistas da qual Domingues faz parte. Para fazer a vistoria, a equipe vai até onde é possível de caminhonete e, depois, de motos ou helicópteros, quando o acesso por terra é difícil.

A subida na linha de 500 mil volts é precedida por um verdadeiro ritual. Primeiro, Domingues é ajudado pelos colegas a vestir as pesadas roupas e a preparar os equipamentos. Em cima da torre mais próxima ao espaçador com defeito já estavam dois outros eletricistas, prontos para ajudar.

¿ O choque acontece e, nessas elevadas tensões, mata por causa da diferença de potência. Se você estiver na linha e tiver algum contato com um ponto na terra é a morte imediata... Se você estiver no mesmo potencial da linha não acontece nada. Ele (Domingues) vai ficar como um passarinho na linha ¿ explica Fábio Gomes.

Os colegas ajudam Domingues a vestir o macacão, que parece de astronauta. A roupa é 75% de aramida e 25% de aço inox. Não se destina a isolar, mas sim a permitir a condutividade da energia. Depois de todos da equipe conferirem se Domingues está com os equipamentos corretos, ele sobe lentamente em uma pequena cadeira. Alguns colegas oram em silêncio.

Os dois instantes mais tensos são quando Domingues é conectado à linha e, depois, desconectado. O momento em que o eletricista é conectado é impressionante. Ocorre um forte barulho, como um curto-circuito, seguido de outro estrondo, como se fosse uma fritura. Logo depois, Domingues segue até o ponto onde fará o conserto.

Enquanto ele está na linha, o colega Everson Rodrigues, há cinco anos nesse trabalho, admite que sempre tem uma ponta de medo:

¿ É bom ter medo, porque ele faz com que a gente nunca descuide da segurança. Quando não se tem medo a gente se machuca. Toda vez é como se fosse a primeira vez.

Depois do conserto, Domingues é desconectado e desce. Ele garante nada ter sentido enquanto ficou com os 500 mil volts no corpo.

¿ Por mais experiência que se tenha, os cuidados têm que ser como da primeira vez. Todos têm essa preocupação, todos cuidam uns dos outros. E lá em cima é um silêncio incrível, parece que se está mais pertinho do céu ¿ diz.

O superintendente de Produção de Furnas, Milton Panico, diz que só após cinco anos de atividade e muitos treinamentos o eletricista pode realizar reparos em linhas vivas. Apesar de pequenos incidentes, como quedas ou cortes, nunca foi registrada uma morte.

O executivo conta que na última emergência ocorreu a queda de uma peça sobre a cabeça de um eletricista, que estava a 30 metros de altura. De capacete, o eletricista desmaiou, ficou ¿grampeado¿ na torre e foi socorrido de helicóptero. Dois dias depois, voltou ao trabalho.

¿ Esses homens são verdadeiros heróis ¿ diz Milton.