Título: EVO COMEU A UVA
Autor: ROBERTO DaMATTA
Fonte: O Globo, 17/05/2006, Opinião, p. 7

Primeiro ele viu a uva. Como líder de um movimento de nacionalização e descolonização de componentes indigenistas messiânicos, Evo Morales ¿ com o apoio entusiástico de Lula ¿ fez o que prometia depois de eleito presidente da Bolívia.

A prova de coerência e sinceridade, essas virtudes gêmeas que passam ao largo do nosso bem informado, um tanto malandro, mas sempre bem educado ¿realismo político¿ tanto do lado direito quanto do esquerdo, não assustou os nossos dirigentes. Naturalmente pensaram que entre ver e comer a uva iria uma enorme distância. A mesma distância que tem separado um brasilsinho que se acredita desonesto e mentiroso porque não tem coragem de comer a uva da sinceridade política ¿ essa tão falada ética; de um BRASIL que sabe que escolheu a honestidade como um valor e a democracia representativa (que não admite partido único, mensalão, conselhos de jornalismo e chaves explanatórias da História) como um ideal e uma causa.

Assim sendo, pensou-se que com toda a probabilidade Evo estava apenas vendo a uva, tal como tem ocorrido com todos os políticos brasileiros que estão sempre do lado certo, querem o bem do país, são ligados a boas causas e, mesmo quando erram, erram para o bem, mas, quando no poder, descobrem imediatamente que podem governar para os seus (amigos, parentes, partidos, religião, etc.), mas nada podem fazer para o bem de todos.

Pois um dos dados mais contundentes da paisagem política brasileira é a descoberta de que, uma vez eleitos, os candidatos se tornam imediatamente impotentes e entendem com clareza cartesiana que pouco (ou nada) podem fazer para o bem comum. Mesmo quando fazem parte de partidos que prometeram, como aquelas antigas maquinas a vapor, 200 revoluções por minuto, ou quando são parte de engenhos políticos cujo objetivo exclusivo é não mover uma palha, todos compreendem, como se estivessem saindo de um sonho infantil, que o poder ¿ durma-se com essa! ¿ não permite fazer coisa alguma. Se, então, na Bolívia semi-indígena e supostamente primitiva, o Evo viu a uva e ¿ eleito ¿ tirou-a do cacho e passa a comê-la, começando pelo gostoso jambon à Lima Barreto que é o Brasil, desse lado da cordilheira ¿ eis um dado extraordinário ¿ é o poder que limita o favorecido, revelando uma penosa impotência.

Conforme estamos fartos de saber e logo iremos presenciar isso diariamente, quem diz que vai fazer, prender, acabar e mudar tudo é o ¿candidato¿ onipresente, onisciente e onipotente, cuja virilidade, entretanto, vai se desvanecendo à medida que se aproxima da vitória. No dia seguinte da tal ¿posse do ou no cargo¿, quando deveria finalmente ¿comer¿ a uva do poder, todos verificam que os eleitos são uns arrematados e irremediáveis impotentes. Chegam até a confundir dieta palaciana, com o aval ambíguo e repleto de realismo político de um PMDB que apenas deseja tirar partido de tudo, com greve de fome. Símbolo máximo desta brasileiríssima impotência governamental.

O papel de candidato permite quase todas as licenças políticas reunidas no verbo prometer. Mas, do dia seguinte da investidura, a República (sempre linda, jovem e, até onde eu posso saber, virgem porque intocada na sua estrutura de deixar a imagem de símbolo para ser uma efetiva e eficiente criada do povo) descobre como um ativo prometer transforma-se numa passiva espera, desculpa, impossibilidade, falta de recursos, herança maldita, denuncismo e greve de fome. Ou seja: em tudo aquilo impede e afasta o candidato cheio de fome de comer, como tem feito o Evo, com a uva. Mas, como compensação pela impotência, tome corrupção política, descaso, ausência de ética, falta de clareza e incompetência administrativa.

Dir-se-ia que há um erro de foco nas observações do poder à brasileira, quando deixamos de lado a atuação concreta dos partidos nos períodos eleitorais, momento em que são obrigados a abrir um espaço para que se processe a disputa dos votos requerida pela lógica do nosso tão detestado liberalismo. Pois se há um axioma político em nosso país, ele certamente passa pela lógica das promessas grandiosas (do então candidato) à plena impotência (do governante eleito).

Mais curioso ainda é verificar que aquilo que chamamos com orgulho esperto de ¿realismo político¿ tem a ver com o adiar o confronto com questões inadiáveis. Assim, é mais ¿realista¿ que um candidato garanta resolver a tragédia do tráfico de drogas prometendo mais escolas primárias do que discutindo a descriminalização. É mais conveniente prometer mais policiamento do que propor um plano de integração das forças policiais em nível local que efetivamente possa mudar a sua qualidade.

Entre, então, ver a uva e comê-la vai um largo espaço. O espaço que divide a indignação bíblica do PT quando um Chanceler tirou os sapatos obedecendo às leis de um país soberano às voltas com um brutal ataque terrorista; e o rotineiro jogo condescendente de dois pesos e duas medidas diante da agressão à honra do Brasil por um Evo que come a uva e, de quebra, a nação.

ROBERTO DaMATTA é antropólogo.

N. da R.: Elio Gaspari está em férias.