Título: UMA SOMBRA NEGRA SOBRE A CAPITAL
Autor:
Fonte: O Globo, 15/02/2005, O Mundo, p. 26

Vi a onda de choque vindo do Corniche. Minha casa é a apenas algumas centenas de metros da explosão e meu primeiro instinto foi olhar para cima, procurando os aviões israelenses que regularmente rompem a barreira do som em Beirute.

Então vi clientes saindo ensangüentados dos restaurantes e a coluna de fumaça subindo da rua do Hotel St. George. Beirute é a minha casa-longe-de-casa, longe dos perigos de Bagdá, e agora aqui estava Bagdá no Líbano, um massacre numa das cidades mais seguras do Oriente Médio. Corri para o Corniche, enquanto todos corriam para o lado oposto, até que simplesmente me deparei com uma massa de entulho e carros em chamas.

Hariri só viajava num comboio de Mercedes fortemente blindadas. Não é de se espantar que a explosão tenha sido tão vasta. Teria de ser para abrir a blindagem. Segui um detetive à paisana depois de um carro pegando fogo até a borda de uma cratera de pelo menos 4,5 metros de profundidade.

Hariri, eu ficava dizendo a mim mesmo. Sentei-me com ele tantas vezes, para entrevistas, coletivas, em almoços ou jantares. Ele tinha muitos inimigos. Inimigos políticos no Líbano, sírios que suspeitavam ¿ corretamente ¿ que ele os queria fora do Líbano, empresários imobiliários que se ressentiam de ele ter comprado amplas áreas de Beirute, e inimigos na imprensa porque possuía um jornal e um canal de TV. Mas ele podia ser um homem afável e bom mesmo sendo um empresário impiedoso.

Não consegui ver seu corpo. Mas enquanto olhava entre as colunas de fumaça, vi o novo centro de Beirute, o centro reconstruído desta bela cidade que a própria companhia de Hariri ¿ ele detinha 10% da Solidere ¿ estava refazendo de suas ruínas. Ele morreu a metros de sua própria criação.

Esta foi uma bomba que levou um bom tempo para construir, um bom tempo para planejar. Estacionado junto a um hotel vazio, o provável carro-bomba atrairia a atenção de poucos. Os atacantes eram homens impiedosos e não levaram em conta os inocentes. Eles queriam matar Rafik Hariri. Nada mais importava.

Nas ruas ao redor, homens e mulheres emergiam com sangue em suas roupas. Ao todo, contei 22 carros pegando fogo. O milionário saudita que jantara com reis e príncipes ¿ cuja amizade pessoal com Jacques Chirac ajudou o Líbano a gerenciar sua dívida de US$41 bilhões ¿ tinha terminado a vida naquele inferno.

Em privado, ele não escondia sua animosidade em relação ao Hezbollah, cujos ataques contra as tropas de ocupação israelense antes de sua retirada em 2000 prejudicaram seus planos para a recuperação econômica do Líbano. E embora tolerasse os militares sírios, tinha seus próprios planos para sua partida. Seria verdade, como diziam em Beirute nestes últimos dias, que Hariri era o líder secreto da oposição política à presença síria? Ou seriam seus inimigos pessoas ainda mais sinistras? Qualquer um com a intenção de matar Hariri sabe como isso poderia reabrir as fissuras da guerra civil de 1975 a 1990.

Milhares de chorosos seguidores de Hariri se reuniram do lado de fora de seu palácio em Koreitem na noite passada, exigindo saber quem matou seu líder. Será que os fantasmas da guerra civil serão despertados após 15 anos de repouso? Não sei a resposta. Mas a nuvem negra que pairou por mais de uma hora sobre Beirute na tarde de ontem escureceu as pessoas sob ela bem mais do que apenas com sua sombra.