Título: Mais de uma democracia
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Fonte: O Globo, 27/01/2005, O Mundo, p. 31

Muitos de nós podemos lembrar como a África do Sul conseguiu, em 1994. Sabemos como a Ucrânia lidou, no fim do ano passado, pela segunda vez; como os palestinos se aproximaram, no início deste mês; e como, depois do embaraçoso desastre de 2000, os americanos conseguiram não estragar, quatro anos depois. Os afegãos chegaram perto, quando participaram em grande número, em outubro. E domingo é vez de o Iraque ¿ castigado, brutalizado e dividido ¿ tentar uma eleição democrática.

Minha aposta é de que mais iraquianos que o previsto podem correr o risco de votar. Esse resultado seria o primeiro acontecimento positivo no Iraque desde a desastrosa invasão anglo-americana em 2003. Lamentavelmente, também permitiria a EUA e Reino Unido justificar seu projeto de democracia no Iraque, apesar de a iniciativa ter causado morte e destruição. Pior, poderia incentivar George W. Bush a dar continuidade a sua missão de democratização em outros lugares.

Porém, mesmo uma eleição relativamente bem-sucedida no Iraque poderia ilustrar algo bem diferente. Porque o que acontecer em seguida poderia levar à compreensão ¿ há muito tempo cultivada no mundo ocidental ¿ de que o sufrágio universal ¿ uma pessoa, um voto ¿ é a única e imutável medida da democracia.

Já está aparentemente claro que no Iraque a fórmula uma pessoa, um voto vai gerar uma assembléia de ampla maioria xiita. A minoria sunita está ameaçando boicotá-la e os curdos querem, pelo menos, um governo regional próprio. Mesmo que o país estivesse inteiramente pacífico, nenhuma minoria teria chance de vencer ou compartilhar o poder. A realidade permanente é que em países divididos, uma pessoa, um voto produz uma maioria política ¿ e pode, sem garantias constitucionais, ameaçar representação e direitos dos outros.

Isto não é uma discussão sobre até onde a democracia pode ser imposta e até onde precisa ter raízes internas. É uma discussão sobre se, a longo prazo, o sufrágio universal produzirá o efeito representativo desejado.

Também não é só no nível de ¿iniciantes¿ ¿ Iraque ou Afeganistão ¿ que as deficiências de uma pessoa, um voto são aparentes. No mundo ocidental, também, as falhas no sistema estão cada vez mais claras. Uma delas é a apatia. Deveria alguém ¿ especialmente um líder nacional ¿ ser eleito com votos de menos da metade dos eleitores? Talvez o voto devesse ser compulsório, como na Austrália. Ou talvez devêssemos interpretar a apatia como fraca aprovação do status quo, e não como um boicote ou um sinal de desilusão.

Outro princípio é o da participação universal. Nesta era de mobilidade, é certo uma pessoa, um voto significar um cidadão, um voto?

Mesmo que as máquinas de votação funcionem impecavelmente, até onde esse sistema justifica seu clamor de apogeu da democracia representativo? Toda essa trama está agora sendo discutida dos dois lados do Atlântico, longe da arena política. A questão é se a democracia é universalmente aplicável tanto quanto acreditávamos. O Iraque pode ilustrar algo mais complicado: reconhecemos democracia onde a vemos, mas o sufrágio universal como padrão definidor pode estar condenado.