Título: SOBREVIVEREMOS
Autor: JOSEPH E. STIGLITZ
Fonte: O Globo, 15/01/2006, Opinião, p. 7

Otodo-poderoso consumidor americano teve outro excelente ano em 2005, ajudando a sustentar o crescimento econômico global, ainda que em ritmo mais baixo que em 2004. Consumiu à altura de seu padrão de renda ou acima dele, e os Estados Unidos como um todo gastaram bem mais do que arrecadaram, tomando empréstimos do resto do mundo a um ritmo febril ¿ mais de US$2 bilhões por dia.

Há um ano, a maioria dos comentaristas dizia que isso era insustentável. Foi evidentemente sustentável, pelo menos durante mais um ano. Mas isso não pode durar muito, o que implica grandes riscos para os EUA e a economia global em 2006.

Duas surpresas prolongaram os bons tempos em 2005. Primeiro, enquanto o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) continuou a elevar as taxas de juros de curto prazo, as taxas de longo prazo não cresceram no mesmo ritmo, o que permitiu que prosseguisse a alta dos imóveis. Isso foi central na manutenção do crescimento global, pois o desempenho da economia dos EUA tem sido alimentado nos últimos anos pelo mercado imobiliário, com hipotecas sendo refinanciadas e o dinheiro resultante sendo gasto, os altos preços conduzindo a mais construção.

Mas isso não deve continuar. Os juros de longo prazo quase certamente começarão a subir ¿ o que deve acontecer este ano. Nesse caso, os americanos gastarão mais em serviço de dívida e terão menos para o consumo. Além disso, a alta dos preços dos imóveis provavelmente vai perder força, e pode mesmo haver queda. Com isso, o refinanciamento de hipotecas deve parar, o que não deixará dinheiro para sustentar a febre de consumo dos americanos. Pelos dois motivos, a demanda agregada vai declinar.

Poderão as empresas mais capitalizadas compensar investindo mais? O investimento bruto bem pode crescer, com a substituição de equipamentos e softwares obsoletos. Mas também há indicações de que a inovação está perdendo força ¿ talvez por causa da diminuição dos investimentos em pesquisa nos últimos cinco anos. E as empresas não costumam investir quando o consumo está caindo. É mais provável que uma retração no investimento acentue o recuo no consumo.

Mas esta não é a única razão para a perspectiva mais sombria para os EUA e o mundo em 2006. Uma segunda surpresa de 2005 foi que, embora os preços do petróleo tenham subido muito mais do que o esperado, o efeito negativo sobre a economia foi pequeno. Os gastos com importação de petróleo aumentaram cerca de US$50 bilhões por ano ¿ dinheiro que de outra forma teria sido gasto principalmente em bens produzidos nos EUA. Os americanos se comportaram como se não acreditassem que a alta do petróleo continuaria. O que não é tão notável: leva um ou dois anos para se sentir todos os efeitos. Agora que os mercados futuros prevêem o barril a US$50 ou US$60 neste e no próximo ano, evaporou-se a demanda por carros pouco econômicos, e com ela as perspectivas para as montadoras americanas, que apostaram no combustível barato e no caso de amor dos americanos pelos SUVs.

O petróleo caro também deve segurar a economia no resto do mundo, embora menos que nos EUA. O crescimento da China vai continuar a espantar o mundo; aliás, dados recentes indicam que sua economia é 20% maior do que se pensava. E a expansão chinesa vai repercutir em boa parte da Ásia. Na Europa, o quadro é misto. O Banco Central Europeu quase perversamente eleva os juros mesmo quando a economia européia requer estímulos para se recuperar. E o mesmo está prometendo o novo governo da Alemanha.

O maior risco é de que os problemas que estão há tanto tempo sendo criados nos EUA finalmente cheguem a um desfecho global: os investidores, dando-se conta dos grandes déficits fiscal e comercial e do alto endividamento das famílias, entrem em pânico e tirem seu dinheiro do país. Alternativamente, juros em alta e mercado imobiliário em baixa podem enfraquecer tanto a demanda que a economia entre em recessão, afetando exportadores de outros países que dependem do mercado americano.

E o governo dos EUA, já enfrentando imensos déficits, pode ser incapaz de reagir com uma política fiscal adequada. Com a confiança na administração econômica de Bush quase tão baixa quanto a confiança na sua administração da guerra no Iraque, há todos os motivos para preocupação com a possibilidade de que, se vier uma dessas crises, ela não será bem gerenciada.

Mas é mais provável que 2006 seja apenas mais um ano de mal-estar: o peso da China na economia global ainda não é suficiente para compensar fraquezas no resto do mundo. A América também vai se arranjar ¿ deixando débitos ainda mais altos para o futuro.

Em suma, 2006 será marcado por incerteza crescente sobre as perspectivas de crescimento econômico global, ao mesmo tempo que a distribuição dos frutos do crescimento permanece lastimavelmente previsível. Nos EUA, pelo menos, 2006 deverá ser mais um ano em que os salários reais manterão estagnado, ou cadente, o padrão de vida da classe média. E no resto do mundo deve ser outro ano em que se ampliará o fosso entre ricos e pobres.

JOSEPH E. STIGLITZ é economista. ©Project Syndicate.