Título: FANTASIAS DE ANO NOVO
Autor: ROBERTO DaMATTA
Fonte: O Globo, 04/01/2006, Opinião, p. 7

Ao fim de um 2005 marcado pela corrupção e pela loucura governamental, penso em realizar a maior das fantasias: propor a renovação dentro de um mundo que fez da mudança sua palavra de ordem e um dos seus valores mais importantes.

No momento mágico, quando os ponteiros do relógio se escondem um no outro, demarcando o instante em que saímos do ano velho mas ainda não entramos no novo, eu penso em mudanças. Mas que mudanças sugerir se sou guiado pela fantasia e não pelo projeto politico sério e correto?

Minha mais ambiciosa fantasia de transformação é a de considerar que 2005 foi o ano em que ¿ graças ao PT e ao governo Lula ¿ o Brasil colocou de quarentena a idéia de mudar exclusivamente pela via revolucionária. Ao fechar o tempo de 2005, penso que passamos do poderoso e enfeitiçador slogan do acabar com ¿tudo isso que aí está¿ para ficarmos com uma palavra de ordem muito mais serena e plausível: a de ¿um Brasil de todos¿, o que configura um desejo inovador de fazer do cidadão o patrão e o alvo das transformações que começam e terminam na sociedade e não no Estado dos palácios ideologicamente iluminados.

Diz a fantasia que a prática governamental e o experimento fracassado de montar um esquema político imbatível amoleceram o eixo duro do PT, obrigando-o a considerar e, conseqüentemente, a se encaixar em outras realidades, aquém e além do seu rosário partidário. Não se pode governar só para o partido. Não é possível ganhar sempre. A isenção e o entendimento políticos em nome de algo maior não são fraquezas, mas requisitos da ordem democrática. Minar o mercado eleitoral equivale a destruir a democracia igualitária. Oposição e situação são como times de futebol: eles querem vencer, mas a vitória só pode ser festejada quando todos (times, juízes, patrocinadores e espectadores) honram as regras do jogo e, com ele, o eventual perdedor.

Ora, esse respeitar as normas pelas quais se joga é um ponto fundamental. Pois ajuda a distinguir o que deve mudar, o que deve ser modificado e, muito principalmente, a conta de chegar entre essas coisas. Eu esclareço. Não se trata de aceitar tudo e não mudar coisa alguma. Mas de tomar consciência de que quando se perde um campeonato ¿ digamos, um mundial ¿ não se precisa alegar (como fazíamos no passado) que o Brasil havia perdido porque era racialmente inferior; ou que os juízes estrangeiros estavam contra nós; ou que não tínhamos disciplina e jamais ganharíamos uma Copa etc. Todos esses diagnósticos baseados em causas finais tinham dois lados. Eles justificavam as atitudes radicais que asseguravam como ¿precisávamos mudar de cabo a rabo porque o que existia era uma porcaria¿ e indicavam que o desejo da mudança radical que justificava a revolução era paradoxalmente um enorme obstáculo para mudar. De fato, a grande questão em toda proposta de mudança sempre tem sido, como discerniu Lênin, ¿o que fazer?¿ Por onde começar essas mudanças cósmicas e tão necessárias?

Ora, o espirito de rebelião e de revolta que hoje ¿ fantasio eu ¿ imbui e contamina a maioria dos brasileiros fala de uma outra coisa. Ele quer ir além da revolução para efetivamente mudar e, mais que isso, desfrutar dos resultados dessas mudanças. Sendo assim, não há mais como satisfazer a opinião pública com promessas de transformação que caem melhor em missionários, messias e populistas de quinta categoria, mas com propostas que falem em como e por que mudar aqui e ali, concreta e efetivamente.

Por isso fantasio o Ano Novo como uma passagem de uma conhecida, cômoda e paradoxal mentalidade revolucionária que fala do mudar tudo (com o fito inconsciente de não mudar nada) para uma atitude pragmática dentro da qual as mudanças acontecem de modo gradual, por meio de ensaio e erro, sendo iniciadas em áreas que todos consideram como mais problemáticas ou carentes de modificação. Com isso, a idéia de revolução deixa de ser um obstáculo para o trabalho cotidiano de mexer aqui e ali, o que mostra o importante papel que a revolta, a reforma e a rebelião também têm na vida social.

E já que é Ano-Novo e as fantasias nada custam, por que não imaginar um Brasil permanentemente marcado pelas implicações positivas do que chamamos sem pensar muito nas conseqüências práticas de ¿ano eleitoral¿?

Se, entre nós, a eleição é realmente mais importante do que o governar com responsabilidade, como mostra essa milagrosa fúria de eficiência federal, estadual e municipal relativamente ao tapa-cratera das nossas estradas e em outras instituições em vésperas de um ano eleitoral e por causa dele, por que não diminuir os mandatos dos cargos eletivos e assim deslanchar uma verdadeira revolução de eficiência e responsabilidade no gerenciamento dos bens públicos?

Ao contrário do que dizem os políticos, sempre com pouco tempo para governar, se o tempo dos mandatos fosse diminuído, se todo ano fosse um ano eleitoral, ninguém esquentaria a cadeira ou se permitiria ser dono do cargo e patrão das instituições públicas para as quais foi eleito. Mais e melhor: com o risco de sair dos palácios e perder as regalias e privilégios conferidos pelos cargos públicos, o perigo da não-eleição faria com que os governos finalmente se voltassem para o povo, como vai demonstrar esse ano novo no qual os governantes ¿ agora também candidatos ¿ voltam a ser pessoas mais ou menos como nós.

No mais, é meu desejo do coração que esse 06 eleitoral seja feliz e próspero para todos os que me honram com sua leitura.

ROBERTO DaMATTA é antropólogo.

A opinião pública não se satisfará mais com simples promessas de transformação