Título: ALÉM DAS PERDAS
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 27/12/2005, O GLOBO, p. 2

Os balanços do ano político têm sido altamente negativos, tanto os que vêm da oposição, que realizou lucros com a crise, como os produzidos pelos governistas postos no olho da ventania. Nem era para menos, depois que a salsicharia política brasileira teve a cozinha escancarada, revelando as porcarias com que são embutidas. Tem se dito também que foi perdido todo o ano parlamentar, assim entendido como o conjunto de mudanças legislativas de interesse público aprovadas pelo Congresso.

Temos dito que, lamentavelmente, nada se fez para melhorar a qualidade da salsicha. Nenhuma reforma política foi aprovada, seja para imprimir mais racionalidade ao sistema eleitoral e partidário, seja para dar mais transparência ao financiamento das campanhas, a mãe devassa do caixa dois e da corrupção política. No calor da crise e correndo contra o tempo, talvez não saísse mesmo reforma que preste. Mas pelo menos uma boa mudança foi aprovada neste finalzinho de ano, e passou quase desapercebida.

Trata-se do projeto do deputado Bismarck Maia (PSDB-CE), determinando o que por sua naturalidade devia ser regra indiscutível: para todos os efeitos, o tamanho de uma bancada partidária é aquele que saiu das urnas. Foi determinado pela vontade do eleitor ao escolher seus representantes na Câmara Federal. E, no entanto, há anos prevalecem regras que driblam um enunciado tão óbvio, estimulando a migração partidária já logo depois da eleição. Dizia o regimento da Câmara que, para projetar a distribuição dos cargos na Mesa, calcular a composição das comissões técnicas e o tempo de televisão de cada partido, valia o tamanho de cada bancada no início da legislatura, em 1º de fevereiro. Com isso, logo depois da eleição, o balcão do aliciamento de deputados era aberto, oferecendo mais por cada passe o partido do governo ou aqueles que vivem de explorar o fundo partidário e o tempo de TV. Entre a eleição de 2002 e 1º de fevereiro de 2003, quase 50 deputados trocaram de partido. A engorda dos chamados partidos do mensalão ainda prosseguiria. O projeto do deputado Bismarck apenas colocou as coisas no devido lugar: vale a bancada que saiu das urnas. Depois disso, a engorda partidária não fará diferença.

Se tão simples regra já estivesse em vigor, alguns desatinos não teriam sido cometidos pelo PT e seus aliados. A CPI dos Correios afirma (embora disponha apenas de indícios fortes) que existe uma relação entre fluxos do valerioduto e as fortes migrações partidárias de 2003 e 2004. Mas certamente o tamanho das bancadas, e os atributos dele decorrentes, foram usados pelos chamados partidos do mensalão para arrancar concessões financeiras do PT. Mas quem mais ganha com o projeto de Bismarck é o eleitor, que mais raramente verá o deputado em que votou bandear-se para outro partido logo depois do pleito. Se o fizer, não será pela força dos argumentos dos que têm a ganhar com o inchaço partidário.

Quanto ao ano legislativo, foi franco mas não é correto dizer que foi totalmente perdido. É verdade que o governo se descabelou para aprovar a lei das PPPs, e sobrevindo a crise, não conseguiu fazer uso do instrumento para financiar grandes projetos. Mas outras leis importantes para o país foram aprovadas. Aldo Rebelo, presidente da Câmara, destaca a de biossegurança, que disciplina o cultivo e comércio de transgênicos e normatiza a pesquisa com células-tronco, tão importante para a cura de algumas doenças. E ainda a lei (que dormitava há mais de 10 anos na Câmara) que instituiu os consórcios públicos, associações entre municípios, estados e outros órgãos públicos para produzirem juntos obras de infra-estrutura, sempre caras e complexas. Já estão servindo à ampliação dos serviços de saneamento e coleta de lixo (reunindo principalmente municípios de regiões metropolitanas). Podem alcançar a construção de estradas, ferrovias e portos. A chamada MP do Bem, apesar das trapalhadas que cercaram sua aprovação, também reduzem o peso dos impostos para o setor produtivo, favorecendo o investimento e a geração de emprego. Pode-se recordar ainda a aprovação da Lei de Falências e a da MP que criou o ProUni, programa que levou ao curso superior, mediante bolsas compensadas por isenções tributárias, quase 120 mil jovens de baixa renda que jamais entrariam na universidade pública.

É muito pouco, sim. Mas olhando-se agora pelo retrovisor, este pouco faz sentido, considerando-se o tenebroso ambiente político criado a partir de fevereiro passado, com a eleição de Severino Cavalcanti. E o pior ainda viria.