Título: A globalização no lixo
Autor: Luciana Rodrigues
Fonte: O Globo, 13/11/2005, Economia, p. 31

Dólar, pobreza na América Latina e China reduzem em até 50% renda de catadores no Brasil

Aqueda do dólar, a voracidade do crescimento chinês, o desemprego na América Latina e a consciência ambiental dos europeus têm feito um estrago na vida de meio milhão de brasileiros que tiram do lixo o seu sustento. São catadores avulsos e trabalhadores em cooperativas de reciclagem que amargam, desde o início do ano, uma perda de até 50% nos seus rendimentos. É o lado mais perverso da globalização, que afeta sem distinção multinacionais exportadoras e famílias que vivem de catar latinhas de alumínio, jornal velho e garrafas de PET.

Levantamento feito pelo Compromisso Empresarial para Reciclagem ¿ Cempre, uma associação sem fins lucrativos que reúne empresas como Coca-Cola, AmBev e Tetra Pak ¿ mostra que o quilo do PET, que no fim do ano passado custava um real, caiu para R$0,60 no Rio de Janeiro (40%).

Miséria influenciou queda recorde de preços, diz especialista da UFF

As latas de alumínio, que rendiam R$4 por quilo, hoje valem R$2,80.

¿ O salário caiu quase à metade. Espero que passe logo essa crise. A gente que mexe com isso não sabe trabalhar com outra coisa ¿ lamenta Paulo Roberto de Souza, presidente da Coopergramacho, que faz coleta no aterro sanitário de Gramacho e que hoje paga um salário bruto de R$309, contra R$500 no início do ano.

O principal vilão dos preços é o dólar. Numa economia global, a sucata virou commodity. Com o real mais forte, os recicláveis brasileiros ficaram caros para grandes compradores internacionais. E as matérias-primas virgens (plástico, ligas ferrosas e papéis não oriundos de reciclagem) se tornaram mais atraentes para as empresas do Brasil e do exterior. Diminuiu a procura pela sucata, caiu o preço.

Emílio Eigenheer, coordenador do Centro de Informação sobre Resíduo Sólido da UFF, conta que em 20 anos nunca viu preços tão ruins para os catadores. Eigenheer implantou o primeiro projeto de coleta seletiva do Brasil, no bairro de São Francisco, em Niterói, em 1985. Ele suspeita que o aumento da miséria urbana, que empurra trabalhadores para a coleta de lixo, elevando a oferta de sucata, influenciou na queda nos preços.

Em São Francisco, o preço do PET caiu de R$1 em maio para R$0,40 em setembro. No papelão e no papel branco ¿ que tiveram alta no levantamento do Cempre ¿ os preços são quase os mesmos desde maio.

¿ O problema é que falta transparência neste mercado. Não sabemos qual é a capacidade real de absorção de nossas usinas de reciclagem e a gangorra de preços torna inviável qualquer projeto de coleta minimamente formalizado. O ônus é sempre pago pelo elo mais fraco: o catador das ruas ¿ diz Eigenheer.

O engenheiro José Henrique Penido, assessor da Diretoria Técnico-Industrial da Comlurb, lista outros fatores que, numa cruel conjunção, contribuíram para a queda nos preços este ano. Em muitas capitais da América Latina, como Montevidéu (Uruguai) e Buenos Aires (Argentina), as elevadas taxas de desemprego multiplicaram o número de catadores de lixo. Muitos desses países estão agora exportando para a China, que até meados deste ano comprava grandes volumes de PET no Brasil e vinha sustentando os preços aqui.

A taxa de desemprego urbano chegou a 14% na Argentina e a 13% no Uruguai em 2004. Penido lembra que no Brasil (onde o desemprego é de 9,6%) como nos países vizinhos, catar lixo é a saída para quem está alijado do mercado de trabalho. O Cempre estima em 500 mil o número de pessoas que vivem da reciclagem. Não por acaso, diz o técnico da Comlurb, o Brasil é recordista mundial, reaproveitando 96% das latas de alumínio.

É um quadro distinto de países como a Alemanha, onde exigências legais e a consciência ambiental dos cidadãos mantêm níveis altos de reciclagem. A tal ponto que, desde a década passada, o país exporta sucata a preços módicos, o que ajuda a derrubar os preços aqui.

¿ No Brasil, a reciclagem é forte graças a trabalhadores desqualificados que têm no lixo a última opção de trabalho digno ¿ diz Penido.

Família atrasa conta de telefone, prestações e aluguel

É gente como Jurema dos Santos, 48 anos, que estudou até a 1ª série e ganha a vida selecionando material reciclável na usina de lixo do Caju. Ela trabalha na cooperativa Six Qualit, e adiou o seu sonho de sair de Belford Roxo para morar perto do Caju.

¿ Cheguei a tirar R$400 aqui e agora foram só R$296. Ganho meu dinheirinho, queria pagar um aluguel mais perto, vou ter que esperar.

Wagner Oliveira, de 20 anos, mora no Caju e, como sua mãe e o irmão mais velho, trabalha na cooperativa de catadores. Mas na sua casa o corte de salários fez a família atrasar a conta de telefone, as prestações com duas redes de varejo e o aluguel.

COOPERATIVAS TENTAM NA CRISE VALORIZAR PRODUTO, na página 32