Título: RAZÕES PARA FORTALECER A ONU
Autor: JOSEPH E. STIGLITZ
Fonte: O Globo, 30/10/2005, Opinião, p. 7

Areunião dos sessenta anos da ONU em setembro mostrou sua força e importância em muitas áreas nas quais a comunidade internacional precisa trabalhar em conjunto. Infelizmente, o encontro também expôs as fraquezas e as limitações da organização.

Fundada no fim da Segunda Guerra para impedir outra catástrofe, a ONU ampliou seu mandato para muito além da manutenção da paz, por mais importante que isso seja. Por exemplo, os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), adotados na cúpula do milênio cinco anos atrás, proclamaram a intenção da comunidade internacional de reduzir a pobreza em todas as suas manifestações e estabeleceram metas concretas a serem atingidas até 2015.

Alcançar consenso político nessas questões complexas nunca é fácil, devido à diversidade dos interesses a serem enfrentados. O êxito requer diplomacia e paciência, e no último encontro a ONU continuou sua marcha para a criação de uma comunidade de nações responsável pelo bem-estar de todos.

A bem da verdade, a tentativa do novo embaixador dos EUA na ONU, John Bolton, de fazer centenas de mudanças de última hora na declaração final do encontro condenou o acordo ¿ talvez deliberadamente ¿ a ser menos amplo e enfático do que se esperava. De fato, Bolton quis até eliminar qualquer referência ao ODM.

Apesar disso, no fim até mesmo os Estados Unidos tiveram de ceder a esse imperativo moral. A declaração do encontro também enunciou, em linguagem diplomática rarefeita, novos direitos e obrigações sobre intervenção internacional nos assuntos internos de um determinado país, como em Darfur. Parece que estamos finalmente nos tornando um mundo em que cada um é o guarda do seu irmão.

Alguns sugeriram que a guerra do Iraque demonstrou a irrelevância da ONU. Pelo contrário, acho que a derrocada do Iraque enfatiza a importância da ONU, e a necessidade de fortalecê-la. Não nos esqueçamos de que, dentro dos limites dos seus poderes, a ONU funcionou. Ela foi chamada a julgar se havia uma ameaça iminente à paz no mundo que exigisse ação militar preventiva. Depois de examinar os indícios, a organização concluiu que não havia razão para ir à guerra, e o risco de desestabilização ¿ sobre o qual a maioria dos especialistas na região tinha advertido ¿ quase certamente pesou nas deliberações.

Desde então, há provas cada vez mais numerosas de que não havia armas de destruição em massa, e de que os governos americano e britânico forneceram informações enganosas, distorcidas e equivocadas. Da mesma forma, há provas esmagadoras de que havia pouca ou nenhuma ligação entre o Iraque e a al-Qaeda ¿ pelo menos antes da guerra.

Em outras palavras, a democracia deliberante ¿ talvez nossa salvaguarda mais importante contra ações impulsivas e irresponsáveis ¿ funcionou na ONU, mas não nos EUA. Infelizmente, a ONU foi incapaz de impedir que os EUA e outros países tomassem medidas que quase certamente violam a lei internacional.

O que aconteceu depois todos sabem. Quando as armas de destruição em massa não foram encontradas, os EUA e sua pequena (e cada vez mais encolhida) ¿coalizão de voluntários¿ apresentaram uma nova razão ¿ a luta pela democracia. Mas se esse fosse o objetivo, obviamente uma longa lista de países deveria ser produzida, e não é certo que o Iraque estaria no topo da lista. Derrubar ditaduras repressoras seria, na realidade, esticar demais o mandato da ONU, coisa com a qual, suspeito, os EUA não concordariam.

Mais diretamente ainda, não era bom sinal para um projeto que se supõe democratizante rejeitar processos democráticos dentro da própria ONU. Os EUA não deixaram dúvidas de que só aceitariam um resultado na ONU, princípio esse que não permite o funcionamento de um organismo democrático, pois insistir numa decisão que esteja de acordo com a vontade de um membro, custe o que custar, é ditadura. Fatos subseqüentes mostraram como é difícil, mesmo para o país mais poderoso do mundo, impor um regime democrático estável.

O Iraque mostrou, dessa forma, a força e as limitações da ONU. Inevitavelmente, sua maior força está na persuasão moral. Até mesmo os americanos relutaram, majoritariamente, em entrar no Iraque sem a bênção da ONU. O processo deliberativo democrático funcionou, e forneceu a resposta certa. Isso deveria fortalecer a confiança na ONU.

Mas a ONU precisa ser fortalecida, por exemplo, pelo financiamento de uma força permanente de manutenção da paz. Com excessiva freqüência, as missões de paz exigem que se passe o chapéu entre os países mais industrializados, o que na prática lhes confere poder de veto sobre quando, onde e como a ONU age.

Ao mesmo tempo, um conselho de segurança fortalecido econômica e socialmente permitiria à ONU influir, com mais eficácia, nos debates sobre a reforma do sistema econômico e financeiro global. Hoje, esses debates costumam se concentrar no FMI, onde prevalecem os interesses financeiros dos países mais industrializados.

Essas reformas virão, cedo ou tarde. A globalização significa uma integração internacional mais estreita, o que, por sua vez, significa maior necessidade de ação coletiva. A ONU é a instituição internacional criada para esse fim, e, à medida que o mundo muda, a ONU deve mudar também. Mas uma reforma profunda terá de esperar por um governo americano comprometido de fato com a democracia global, não só com palavras mas com atos.

JOSEPH E. STIGLITZ é economista. © Project Syndicate.