Título: LIÇÕES DA TSUNAMI NEGRA
Autor: JOSEPH E. STIGLITZ
Fonte: O Globo, 25/09/2005, Opinião, p. 7

O mundo ficou horrorizado com a resposta do governo federal americano ao furacão Katrina e seus efeitos em Nova Orleans. Quatro anos depois dos ataques terroristas de setembro de 2001, e de bilhões de dólares supostamente gastos em ¿preparação¿ para outra emergência, os Estados Unidos mostraram ao mundo que não estão preparados, mesmo para um ataque precedido de muitos avisos.

A diferença entre a tsunami na Ásia, em dezembro, e o que está sendo chamado de tsunami negra nos Estados Unidos ¿ porque causou mais estragos entre os pobres de Louisiana, na maioria negros ¿ é extraordinária. O desastre asiático mostrou pessoas capazes de superar antigas divergências, com rebeldes depondo armas para se juntarem à causa comum do resto da Indonésia. Em comparação, o desastre em Nova Orleans ¿ e em outras partes da costa do golfo americana ¿ expôs e agravou essas diferenças.

A resposta do governo Bush ao furacão confirmou a suspeita dos negros de que enquanto mandam seus filhos lutarem em guerras americanas são abandonados pelos Estados Unidos na rota da prosperidade, e não contaram com preocupação nem compreensão quando mais precisavam. Houve uma ordem de retirada, mas aos pobres não se ofereceram meios de cumprir essa ordem. Quando a ajuda chegou, foi, nas palavras de um colunista do ¿New York Times¿, como no Titanic: os ricos e poderosos se safaram primeiro.

Eu estava na Tailândia logo depois da tsunami, e vi a impressionante resposta do país. Os tailandeses enviaram funcionários consulares e diplomáticos às áreas afetadas, cientes da sensação de desamparo dos que ficaram isolados longe de casa. Os Estados Unidos impediram que funcionários estrangeiros ajudassem os americanos em Nova Orleans, talvez com vergonha do que veriam.

Até mesmo o país mais rico do mundo tem recursos limitados. Se reduz os impostos dos ricos, terá menos para gastar com o conserto de diques; se envia a Guarda Nacional e reservistas para lutarem numa guerra sem sentido no Iraque, haverá menos recursos para enfrentar crises internas.

É preciso fazer opções, e as opções são importantes. Políticos míopes como Bush geralmente desprezam investimentos a longo prazo em troca de vantagens a curto prazo. Ele recentemente assinou uma generosa lei de infra-estrutura que inclui, entre outras vantagens para seus correligionários, uma infame ponte para lugar nenhum no Alasca. O dinheiro que poderia ter sido usado para salvar milhares de vidas foi usado para comprar votos.

Agora os Estados Unidos vão pagar por terem ignorado as advertências sobre a vulnerabilidade dos diques em Nova Orleans. Nada, é claro, poderia ter livrado Nova Orleans completamente do impacto do Katrina, mas a devastação certamente poderia ter sido menor.

Os mercados, apesar de suas virtudes, não funcionam bem em crises. Na realidade, os mecanismos de mercado geralmente causam repulsa quando observados numa emergência. O mercado não reagiu à necessidade de retirada enviando grandes caravanas de ônibus para transportar as vítimas; em alguns lugares, reagiu triplicando o preço das diárias de hotel nas áreas vizinhas, o que, mesmo refletindo a mudança na relação entre procura e oferta, é vilipendiado como extorsão. Esse comportamento é odioso porque traz poucos benefícios ¿ nenhum aumento significativo na oferta a curto prazo ¿ e tem um alto custo distributivo, com os que dispõem de recursos se aproveitando dos destituídos.

O economista Amartya Sen, Prêmio Nobel, tem afirmado com insistência que a fome na maioria dos casos está associada não à escassez de alimento, mas à incapacidade de levar alimento a quem precisa, em grande parte devido à falta de poder aquisitivo. Os Estados Unidos, o país mais rico do mundo, tinham, é claro, recursos para evacuar Nova Orleans. Bush simplesmente esqueceu os pobres ¿ talvez centenas de milhares carentes de meios para custear o próprio deslocamento.

Pobres não têm cartão de crédito, e a maioria dos que ficaram encurralados estava sem dinheiro porque era fim de mês. Mas, ainda que tivessem dinheiro, não é certo que os mercados reagiriam com a rapidez necessária para oferecer suprimentos; em tempos de crise, eles geralmente não são eficientes. Essa é uma das razões pelas quais as forças armadas não usam um sistema de preços para alocar recursos.

Em janeiro, depois da tsunami, em resposta a apelos gerais para que fosse adotado um sistema de alarme mais eficiente, comentei que o mundo fora advertido a tempo sobre o aquecimento global. Os outros países começaram a ficar mais atentos, mas Bush, tendo ignorado alertas sobre planos da al-Qaeda antes de 11 de setembro de 2001, e tendo não apenas ignorado os alertas sobre os diques de Nova Orleans, mas também cortado verbas destinadas a consertá-los, não levara os Estados Unidos na mesma direção.

Cada vez mais os cientistas acreditam que o aquecimento global será acompanhado de perturbações climáticas. Indícios recentes alinham-se com essa hipótese. Talvez Bush achasse que as conseqüências do aquecimento global só seriam percebidas bem depois que ele deixasse a Casa Branca ¿ e que seriam mais sentidas por países pobres, baixos, tropicais, como Bangladesh, do que por um país rico localizado na zona temperada.

Mas talvez haja pontos brilhantes nas nuvens sobre Nova Orleans. Talvez os Estados Unidos, e especialmente Bush, se convençam de que é preciso juntar-se ao resto do mundo na luta contra a pobreza e em defesa do meio ambiente. Ao enfrentarmos ou nos prepararmos para desastres, sejam naturais ou provocados pelo homem, precisamos fazer mais do que simplesmente ter esperanças e rezar.

JOSEPH E. STIGLITZ é economista. © Project Syndicate.