Título: O CAMINHO É O DESARMAMENTO
Autor: CARLOS LOPES e GIOVANNI QUAGLIA
Fonte: O Globo, 08/09/2005, Opinião, p. 7

Ouso indevido de armas de fogo afeta a vida de milhões de cidadãos em todo o mundo. O tráfico ilegal de armas alcança níveis alarmantes e uma quantidade significante delas está totalmente fora de controle, sendo utilizada por grupos criminosos voltados para o narcotráfico, a lavagem de dinheiro e outras atividades ilegais. A ausência de mecanismos efetivos para o controle da corrupção permite que armas de fogo legalmente compradas se tornem ilegais e sejam negociadas no mercado paralelo. Manipuladas indevidamente pela população civil, elas podem matar e ferir milhares de pessoas, alimentando o medo e fomentando a instabilidade e o conflito social. Tal situação representa uma ameaça constante ao desenvolvimento sustentável e à segurança humana.

Uma boa dimensão da violência relacionada às armas de fogo é dada pelo projeto Small Arms Survey, do Instituto de Estudos Internacionais de Genebra (Suíça). A partir de informações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC), o projeto calcula que cerca de 200 mil mortes são provocadas anualmente por armas de fogo em todo o mundo. São mortes relacionadas a homicídios, suicídios e disparos acidentais, sendo cinco vezes maiores na América Latina e no Caribe do que no resto do mundo. A resposta dos cidadãos é desanimadora: aumento dos gastos com serviços formais e informais de segurança privada e a decisão de possuir sua própria arma, muitas vezes de forma ilegal.

O Brasil, infelizmente, ocupa um lugar de destaque nesse cenário. O impacto da arma de fogo na saúde do brasileiro é revelado em um estudo da pesquisadora Luciana Phebo, feita para a ONG Viva Rio, a partir de dados do Datasus do Ministério da Saúde referentes a 2002. Segundo ela, o Brasil tem o maior número de mortes por arma de fogo em todo o mundo. Naquele ano, elas causaram a morte de 38 mil pessoas, seja por homicídio, suicídio ou disparos acidentais. Em números absolutos, essa realidade supera a de países tradicionalmente violentos, como Colômbia, El Salvador e África do Sul. Em relação à população, o Brasil ocupa o 4º lugar no ranking mundial de mortalidade por projéteis de armas de fogo. No país, o risco de morrer por armas de fogo é 2,6 vezes mais alto do que no restante do mundo; e essas mortes, na sua grande maioria, são homicídios (90%).

Os crimes provocados por armas de fogo são uma das grandes causas do medo e da violência entre a população. Especialmente preocupante é o grande número de jovens e adolescentes que carregam armas de verdade, ou mesmo imitações, para praticar crimes ou promover uma noção equivocada de força, auto-estima e autoproteção. Parte dessa realidade está relacionada às atividades de gangues urbanas ligadas ao tráfico de drogas e a outras atividades criminosas.

Existe um crescente reconhecimento sobre a impossibilidade de os países com altos índices de violência relacionada às armas de fogo conseguirem atingir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) para 2015. Sendo assim, as Nações Unidas apóiam os processos de desarmamento como uma das vias para atingir os ODM. Devemos fomentar a segurança humana. O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, em seu relatório ¿Em maior liberdade¿, defende o fomento da ¿vida sem medo¿ como uma das prioridades-chave para reduzir a pobreza e promover o desenvolvimento sustentável.

No Brasil, os dados demonstram que a restrição da circulação de armas de fogo é absolutamente necessária para se atingir melhores condições de vida para a população e contribuir para o alcance dos ODM. A Campanha Nacional de Desarmamento tem sido um passo importante nesse sentido. No próximo dia 23 de outubro, os eleitores brasileiros serão chamados às urnas para votar no referendo sobre a proibição do comércio de armas no país. A pergunta é simples: ¿O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?¿ A violência vivida hoje nas cidades brasileiras impele os eleitores a responder positivamente. Não se pode abrir mão dos compromissos a favor da paz se queremos um Brasil sem violência para todos nós.

Realizado o referendo, o Brasil deve avançar na questão do controle sobre a produção e o comércio de armas de fogo. Apesar de o país ter ratificado a Convenção da ONU contra o Crime Organizado Transnacional e seus protocolos contra o contrabando de imigrantes e o tráfico de pessoas, ainda não foi votado pelo Congresso Nacional o protocolo dessa convenção contra a produção ilegal e o tráfico de armas de fogo, suas partes, componentes e munições. O Congresso deve aprovar esse protocolo, que oferecerá os instrumentos necessários para enfrentar o problema, inclusive por meio da cooperação com outros países.

O Sistema ONU apóia o desarmamento da população civil no Brasil, ao mesmo tempo em que atua na construção de mecanismos que ampliem o controle das armas de fogo no país. Essa ação também se estende ao Mercosul, onde o UNODC e o PNUD já estão atuando. Em abril deste ano, foi assinado um projeto entre as duas agências para acelerar a ratificação da Convenção contra o Crime Organizado e seus três protocolos na região, incluindo o Chile. O objetivo é fortalecer a cooperação nas fronteiras e desenvolver mecanismos para o acompanhamento simultâneo de produção, comercialização e transporte ilegal dessas armas.

Para complementar a ação regional sobre o controle de armas, o Sistema ONU no Brasil criou um grupo temático sobre Criminalidade Urbana e Redução da Violência. Serão identificadas oportunidades de conscientização da sociedade brasileira sobre a criminalidade urbana e a prevenção à violência, assim como modelos a serem aplicados. Também serão disseminadas boas práticas implementadas nacionalmente sobre a questão e, ao mesmo tempo, identificadas oportunidades para que o todo o Sistema ONU possa atuar em prol da redução da violência. As Nações Unidas entendem que o desarmamento é um dos caminhos a serem trilhados nessa direção.

CARLOS LOPES, coordenador residente do Sistema ONU no Brasil; e GIOVANNI QUAGLIA, representante do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC) para o Brasil e o Cone Sul.