Título: ARGENTINA REVIVE O FANTASMA DA INFLAÇÃO ALTA
Autor: Janaina Figueiredo e Luciana Rodrigues
Fonte: O Globo, 04/09/2005, Economia, p. 31

Preços devem subir 11% este ano. País voltou a crescer, mas esbarra na falta de investimentos produtivos

BUENOS AIRES e RIO. Após ter conseguido reativar uma economia que, entre 1998 e 2002, despencou quase 20%, desempregou milhares de pessoas, decretou o maior calote da História e isolou-se da comunidade internacional, a Argentina se vê diante de nova encruzilhada. Mais uma vez, o país está às voltas com a inflação, uma pedra no sapato do presidente Néstor Kirchner, que tenta contornar a situação retaliando empresas que decidem reajustar seus preços.

Mesmo com o controle oficial, nos primeiros sete meses deste ano o Índice de Preços ao Consumidor subiu 7,2%. E, segundo projeções do Banco Central da Argentina, o país deve fechar o ano com uma inflação de 11%, ou seja, no perigoso terreno dos dois dígitos.

O governo Kirchner também está falhando em reconquistar a confiança de investidores estratégicos, aqueles que destinam recursos para a construção de fábricas e ampliação da capacidade produtiva do país. O investidor especulativo de curto prazo voltou ao país, aproveitando os preços baixos pós-moratória, e esse é um dos motivos para a queda no risco-país da Argentina (que mede o quanto o país paga de juros em sua dívida), hoje próximo ao do Brasil.

País recebe só 3% do que é investido na América Latina

Mas, segundo estudo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), do total de investimentos produtivos externos destinados à região, apenas 3% vão para a Argentina, contra 33% do Brasil e 10% do Chile.

¿ O governo Kirchner só está pensando no curto prazo, em medidas populares como o aumento de salários, que terminam provocando mais inflação ¿ explicou o chefe de analistas para a América Latina do Merrill Lynch, Pablo Goldberg, por telefone, de Nova York.

Desde 1994, enquanto a Argentina teve um crescimento médio anual de 1%, o Brasil registrou expansão de exatamente o triplo disso: 3% ao ano. Analistas brasileiros e argentinos, além de lamentar os efeitos colaterais da moratória, criticam a atual política de Kirchner de manter os juros muito baixos e o câmbio artificialmente depreciado, o que acaba alimentando a inflação. É um quadro oposto à atual conjuntura no Brasil, onde os juros são altos e o real já subiu mais de 10% frente ao dólar este ano.

Segundo Goldberg, a Argentina precisa resolver questões pendentes como a renegociação das privatizações e o conseqüente reajuste das tarifas de serviços públicos; a recuperação do mercado de crédito; e os problemas de abastecimento de energia. Para ele, um argentino que acompanhou de perto a crise de seu país, o caminho seguido pela Argentina jamais deveria ser imitado.

¿ Deve ficar claro que a Argentina não tinha outra saída e pagou um preço altíssimo pelas medidas que adotou. Mais de 50% dos argentinos passaram a viver abaixo da linha da pobreza; o país sofreu uma fuga de capitais em torno de US$20 bilhões; o sistema financeiro entrou em colapso. O que devemos perguntar é: um país como o Brasil estaria disposto a pagar esse preço para, depois de oito anos perdidos, crescer 7%? ¿ enfatizou o analista do Merrill Lynch.

Luiz Roberto Cunha, professor da PUC-Rio, acredita que a principal razão para a alta de preços na Argentina é justamente a falta de investimentos. Como o país cresceu muito no rastro da crise, esgotou a capacidade ociosa de suas indústrias e, agora, os preços sobem frente a uma demanda crescente dos consumidores. Ele acrescenta que o congelamento de tarifas contém a inflação de modo artificial ¿ já que os preços defasados terão que ser corrigidos no futuro ¿ e inibe os investimentos.

Cunha lembra ainda que, no Brasil, mesmo com o real valorizado, as empresas são competitivas. O mesmo não ocorre na Argentina de câmbio artificialmente depreciado (Kirchner insiste em manter a cotação do dólar em torno de 3 pesos). A Argentina registrou, nos últimos 27 meses consecutivos, déficit comercial com o Brasil.

Carlos Langoni, diretor do Centro de Economia Mundial da Fundação Getulio Vargas, critica o que ele chama de ¿neopopulismo¿ de Kirchner. Ele destaca que, com a disparada da inflação, a Argentina tem hoje juros reais (ou seja, descontando a inflação) negativos, o que desestimula a poupança dos cidadãos, necessária para financiar investimentos:

¿ Eu prefiro juros reais elevados do que negativos. O Brasil, mesmo com juros altos, viu seus investimentos crescerem 8,6% nos últimos 12 meses.

As medidas populistas de Kirchner têm um claro objetivo: captar votos para as eleições legislativas do dia 23 de outubro, quando será renovada parte do Congresso nacional.

A cada 1% de inflação, 150 mil vão para a pobreza

Para Michael Mussa, ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI) e atual diretor do Institute for International Economics (IIE) dos EUA, a recuperação da economia argentina foi surpreendente, mas nada justifica passar por uma crise tão devastadora. Ele se mostrou preocupado com a escalada da inflação e questiona as políticas de Kirchner:

¿ As autoridades argentinas estão mantendo o peso muito desvalorizado e essa política está provocando um aumento da inflação. O Brasil tem uma moeda mais valorizada e Banco Central mais comprometido com o controle inflacionário.

Segundo analistas argentinos, a cada aumento de 1% na inflação, 150 mil argentinos de classe média passam a ser pobres e 90 mil pobres passam a ser indigentes (não têm recursos para atender as necessidades básicas de alimentação).

¿ O governo emite pesos para comprar dólares e manter a cotação em 3 pesos. Com isso aumenta a liqüidez (quantidade de dinheiro em circulação), e os preços sobem. Kirchner tem duas alternativas: usar os juros ou sacrificar inflação. O governo tem optado pela segunda alternativa ¿ disse Dante Sica, diretor do Centro de Estudos Bonaerense.