Título: A CPI COMO DRAMA SOCIAL (2)
Autor: Roberto DaMatta
Fonte: O Globo, 20/07/2005, Opinião, p. 7

Vejam o contraste. Enquanto a dimensão econômica do sistema, regulada pelo mercado que tantos abominam e outros querem abolir, opera tranqüilamente, na esfera política manobrada por vontades, simpatias e favores pessoais e políticos, descobre-se uma vergonhosa trama de conchavos e roubalheiras do nosso dinheiro (que é mais público que as mais desprezíveis casas de tolerância), bem como um ninho de ambigüidades impensáveis entre um partido político e a chamada elite governamental, cujo compromisso deveria ser o de honrar as leis do país. Onde, portanto, Roberto Jefferson atuou como um Rei Momo pondo tudo de ponta-cabeça, foi exatamente na tal esfera do Estado, que justo os membros desse governo petista querem ampliar, controlar, fortalecer e "centralizar".

Destruindo maldosamente os segredinhos dos donos do poder e contrariando o nosso bem estabelecido código de comportamento hierárquico (esse código que jamais politizamos), as CPIs lembram os carnavais.

Primeiro, porque a cada reunião produzem um novo samba-enredo expressivo do nosso mais triste preconceito, pois quem faz neste país o "samba do crioulo doido" não são as escolas de samba, mas o partido político que mais se autodefiniu como racional, moderno, ideológico e - devo repetir? - íntegro. Agora se entende o pavor das CPIs. É que dissolvendo hierarquias e ameaçando os códigos de precedência social enterrados nos nossos corações, elas escandalizam justamente porque sugerem horizontalizar e igualar o que sempre esteve verticalizado. Nas CPIs, os donos dos nossos bem estamentados (o que diria Raymundo Faoro de tudo isso, meu Deus!) círculos sociais desorganizam-se. Por isso elas são acusadas de promover a instabilidade, pois as diferenças entre os poderosos devem ser dirimidas, como contou Jefferson, em visitas íntimas às nossas casas e não na rua - em público e na frente de "todo mundo" - quando corremos o risco de, num bate-boca mais exaltado, perder o controle dos "fatos". Essa sinceridade que traz a casa onde se fazem os planos alternativos para a chamada "democracia burguesa" para a rua é um texto fundamental dessas CPIs.

Se fôssemos um sistema ordenado por um só princípio social - a igualdade que sustenta o mercado e as regras da estabilidade monetária (só os sistemas autoritários têm muitas moedas) - as CPIs não causariam tanto pânico. Mas como misturamos hierarquia e igualdade, mercado com reserva de mercado e fatos (roubalheira) com valores (conspiração), qualquer inquérito corre o risco de não terminar.

Pois quando um lado fala em igualdade e no dever de apurar os fatos, o outro apela para o golpe, a desestabilização conspiratória. Num caso, todos (inclusive o governo e o PT) seriam iguais perante a lei; no outro, a lei estaria servindo para desmontar as autoridades constituídas. A grande ameaça das CPIs seria como englobar a hierarquia na igualdade. Esse é o dado revelador de que até hoje não decidimos se somos mesmo uma sociedade de mercado, baseada em direitos individuais, ou uma grande autarquia de camaradas de armas e companheiros de partido, dirigidos por uma nomenclatura que também combina a seu modo capitalismo e socialismo em nome de um povo pobre e faminto, sem deixar - ao que tudo indica - de enriquecer os seus gerentes.

Um outro ponto delicado de qualquer CPI é que ela submete episódios, pessoas e regras a uma investigação. Um dos seus pontos mais dramáticos é ver como o inquérito desnuda as pessoas, separando-as dos papéis que ocupam. Isso promove um igualitarismo ácido e liberalizador, totalmente avesso a nossa moralidade que gosta de afirmar que "quem foi rei, sempre é majestade". De fato, não poderia haver maior dramaticidade do que criar um ritual no qual um sujeito deixa de ser juiz, deputado, empresário ricaço ou delegado para ser momentaneamente investigado. Aqui você continua deputado, diretor ou ministro, diz-se, para o deleite dos inimigos e a vergonha dos parentes e do investigado, mas está sob investigação. Todos pisam em ovos, porque, no Brasil, não é nada fácil destituir alguém de um papel social importante. E tanto isso é dramático que, nas nossas CPIs, o prestígio do investigado se exprime espacialmente, quando ele se senta à mesa principal, ao lado do relator e do presidente do grupo que o investiga e interroga. Nos Estados Unidos, disse-me pelo telefone o grande brasilianista Richard Moneygrand, os investigados pelo Congresso ficam lá embaixo, o destaque sendo dado aos argüidores, todos sentados em mesas altas. Mas no Brasil, isso só acontece nos programas de televisão. Essa televisão, complementou ele, que parece muito mais séria do que a realidadeÄ

ROBERTO DaMATTA é antropólogo.

Contrariando nosso código de comportamento hierárquico, CPIs lembram carnavais