Título: O FUNDO DO POÇO (I)
Autor: Roberto DaMatta
Fonte: O Globo, 01/06/2005, Opinião, p. 7

O repúdio veemente à corrupção sinaliza o crescimento de uma robusta consciência cívica no Brasil. Consciência duramente conquistada numa luta que congregou todos os setores democráticos da sociedade contra um Estado centralizado, arrogante e aparentemente muito poderoso. A saída "lenta, gradual e segura" de um regime autoritário, no qual os militares monopolizavam, mas se alternavam no poder, ajudou na busca de saídas institucionalmente pautadas e contribuiu para a politização da sociedade. O longo processo de "abertura política" também popularizou e consolidou a noção de direitos civis. A idéia e o ideal de cidadania foram, sem dúvida, o símbolo capaz de arregimentar grupos, partidos e pessoas com visões do mundo diferenciadas e até mesmo conflituosas, numa ampla frente democrática.

Não posso demarcar todos os sentidos de "cidadania" deste forte e sofrido Brasil contemporâneo, mas não será exagero dizer que o seu centro estava no direito de preferir governantes em eleições livres de pacotes coercitivos desenhados para a ocasião, de acordo com as regras do liberalismo moderno. Neste contexto, ser cidadão era ter o direito de escolher as agremiações partidárias de sua preferência, bem como de tomar parte (como candidato ou como eleitor) num mercado eleitoral no qual todas as correntes estavam representadas.

Uma bem-sucedida rotinização eleitoral e a conjunção de um mercado político-partidário com a estabilidade monetária que derrotou a inflação aprofundaram a noção de cidadania. Votar passou a ser mais do que simplesmente eleger e começou a assinalar um acompanhamento permanente do governo pelo qual o eleitor-cidadão foi responsável. Ai está uma mudança radical nos laços entre eleito e eleitor no Brasil, uma transformação que parece marcar a tentativa de redefinição dos elos entre sociedade e Estado no Brasil contemporâneo e que começa a se manifestar, com o suporte essencial da mídia, cada vez mais entre nós.

A corrupção pode ser a ponta do iceberg, mas a impunidade dos letrados, as prisões especiais, a demora da Justiça, a ausência de diretrizes claras para o sistema por parte do governo que ainda não sabe se é Brasil ou PT, as futricas governamentais e as gafes do presidente que produzem enormes doses de pessimismo são outros picos que ultrapassam o nível das águas nas quais se move a sociedade. Um novo conjunto de demandas cidadãs começa a se fazer sentir, exprimindo que o momento não é mais de ter um Estado que inventa generosamente um povo por meio de seus decretos e instituições, mas de uma sociedade que começa a ter a pretensão de confrontar, para cobrar e exigir do Estado. E, eis a grande novidade, não se cobra apenas mais aumentos de salário, mas liberdade para se trabalhar melhor o que só pode ocorrer num sistema mais coerente e honesto consigo mesmo. Não há como harmonizar impunidade (que é a maior marca da hierarquia e do privilégio) com um igualitarismo constitutivo da economia de mercado.

Aquela "cidadania eleitoral", conquistada por algum movimento partidário e finalmente outorgada pelo "governo", que se satisfazia em votar, transformou-se e, bordejando a idéia de democracia igualitária, passou a exigir coerência dos administradores. Sobretudo no que diz respeito às promessas de campanha e ao uso dos dinheiros públicos e da máquina estatal. A idéia do "político" como um campo social sem remédio, minado por vieses singulares, expressos em anedotas espirituosas que douram rotinas ineficientes, ambições cínicas, golpes baixos e malandragens pantagruélicas, mudou. Do mesmo modo que o povo teve de se ajustar às parcimônias de um Estado preocupado com a Lei de Responsabilidade Fiscal, esse povo quer que o Estado também seja submetido às mesmas normas que ele cobra da sociedade. Quem deve tirar o traseiro da cadeira não é o cidadão-eleitor, mas os dirigentes do Estado que continuam a desfrutar de um estilo de governo perdulário e sem controle, baseado naquilo que Thornstein Veblen chamou de "consumo conspícuo" - aquele estilo de consumo destinado a exprimir regalias ou privilégios os quais, no Brasil, têm a claríssima função de hierarquizar quem está dentro e quem está fora do Estado (ou do "poder", como falamos coloquialmente).

Se tudo tem um custo e um benefício - diz essa nova cidadania - então por que somente o Estado pode gastar mais, nomear mais, ser mais inoperante e, pior que isso, tolerar, no limite do bom senso, a corrupção dos que estão de fato roubando os meus, os seus e os nossos impostos? Quando o Estado cobra, eu pago. Mas quando cobramos do Estado o que acontece? Será possível continuar nadando nesse oceano do "nada acontece", do nada dá em nada, do tudo acaba em pizza, numa sociedade de massa obstinada com a busca da igualdade, como é o caso deste sofrido Brasil em que vivemos? (Continua na próxima semana).

ROBERTO DaMATTA é antropólogo.

Quem deve tirar o traseiro da cadeira não é o cidadão, mas os dirigentes do Estado