Título: FILAS: ÓBVIO ULULANTE E PATRIMÔNIO NACIONAL
Autor: Roberto DaMatta
Fonte: O Globo, 18/05/2005, Opinião, p. 7

A fila é o óbvio ululante do Brasil. Uma prova contundente disso é o recorrente tratamento da fila como vergonha, calamidade pública e exceção, quando - na realidade - a bicha é parte constitutiva e estrutural de nossa paisagem sociológica.

Desde que o Brasil existe, fazem-se filas. Tirando a praia, temos filas para tudo. Houve fila para ver a primeira missa e o primeiro degredo. Claro que havia filas para beijar a mão do Rei e para aplaudir o Ditador. Tínhamos filas para a missa e para a comunhão. Hoje temos a fila do banco, do autógrafo, do engarrafamento, do ônibus, do estádio, do cinema, da boate e do restaurante. "Se é bom - diria um teórico desse nosso patrimônio nacional - então tem que ter fila!" E tome fila para atender as boas, modernas e moralizadoras necessidades burocráticas que o Estado inventou. Daí, como sabem os burocratas brasileiros, as bichas da carteira de identidade, de motorista, do trabalho, do título de eleitor e das mais variadas e infindáveis certidões. Isso para não falar das dos recadastramentos, essas filas que nos fazem louvar o ministro que recentemente as reinventou.

Ainda vamos ver pessoas morrendo na fila dos atestados de vida, essa excrescência legal que só pode existir como rotina no Brasil. Somos assaltados por bandidos e filas. Pior: temos filas de criminosos esperando para nos assaltar!

Sinceramente, não sei por que ainda não entronizamos uma Nossa Senhora da Fila. Doce Madona que possa rogar e aliviar o nosso sofrimento, sobretudo quando nelas morremos esperando pelas prerrogativas que conquistamos.

Precisamos de um Weber, um Romano de Sant'Anna e um Jabor para falar dessas lentas linhas humanas onde, resignados e mesmo de costas uns para os outros, rimos da nossa própria sorte. Para nós, a fila é um valor, um traço a distinguir quem é alguém e quem são os ninguém. Por causa disso, as filas não podem acabar. Liquidadas ou domesticadas, elas iriam inventar um halo de inadmissível igualdade, deixando-nos sem bússola para distinguir os inferiores dos superiores, os donos do poder dos que esperam pelos decretos, nomeações, sentenças e milagres.

Se houvesse um Rousseau brasileiro seu contrato social teria como base algo assim: os homens nascem livres e iguais até que alguém diz em nome do Estado: façam fila.

Discutindo as mortes de fila, descobri que há filas prestigiosas e as comuns. Ou seja: até as filas têm fila! Impossível, pois, acabar com as filas num sistema decidido a recusar a igualdade.

Ao fim e ao cabo, as bichas mostram como o Brasil é tocado a espera. Aqui, como em todos os sistemas aristocráticos, "Deus não inventou a pressa."Mais: a velocidade, como chamava atenção o grande Câmara Cascudo, é inversamente proporcional à hierarquia. A majestade é vagarosa nos gestos, como rapidamente aprendeu o Lula, exceto quando se movimenta de avião, deixando de reiterar a sua experiência de candidato do povo quando trafegava de automóvel por essas esburacadas e mortais estradas do Brasil. Esse sim, o Brasil de todos.

O fato é que a fila fala de um sutil elo dialético. De um lado, aquele que de dentro de um palácio, por detrás de um balcão, envelopado num avental branco ou uniforme e com um carimbo na mão, atende, concede, autoriza, negocia, permite, decreta, veta, nega e faz; e, do outro, os que na fila, esperam - p. da vida, esperançosos ou conformados - pelo atendimento.

No Brasil, existem regras para atender e para pedir. Quem concede o "dom" é superior e como tal age com vagarosa tolerância e franca condescendência. Nas filas, continuamos realizando o ideal escravocrata segundo o qual o Amo anda grave, compassado e lentamente (pedindo autoritariamente paciência), ao passo que o Escravo "corre" e espera. A espera é o sintoma de inferioridade social. Fazer-se esperar é uma prerrogativa da importância. O "chá de cadeira" é a fila do notável. Chegar atrasado é o apanágio do poderoso, aquele cuja presença é estrutural para qualquer começo.

Imobilizando cidadãos definidos como móveis e livres - e eventualmente os matando de direitos que não são atendidos - a fila é, certamente, um dos maiores insultos contra a cidadania moderna. Mas, como sabem os governos e seus burocratas, "a pressa é inimiga da perfeição". Para que resolver um problema "natural" se eles votam em mim de qualquer modo, mesmo quando roubo ou cubro minha incompetência com promessas? O cidadão apressado come cru e, nervoso, pode ser acusado de "desacato a autoridade". Na fila, lembramos amargamente que a tal democracia tem muito a ver com um mundo de pequenas coisas que escapam das majestosas promessas eleitorais.

Em memória dos que morreram de direitos nessas filas que denunciam a nossa contumaz e já maltrapilha incompetência democrática, eu lavro o meu protesto.

ROBERTO DaMATTA é antropólogo.

N. da R.: Elio Gaspari volta a escrever neste espaço em junho.