Título: O LEGADO DE WOLFENSOHN NO BANCO MUNDIAL
Autor: Joseph E. Stiglitz
Fonte: O Globo, 16/05/2005, Opinião, p. 7

No fim deste mês, a gestão de James Wolfensohn como presidente do Banco Mundial chega ao fim. Embora ainda haja muito para ser feito e consolidado, suas conquistas como líder da comunidade internacional de desenvolvimento são dignas de nota e formam um sólido alicerce para futuros trabalhos.

Talvez a contribuição mais importante de Wolfensohn tenha sido tornar mais clara a missão do banco ¿ promover o crescimento e erradicar a pobreza no mundo em desenvolvimento ¿ e ao mesmo tempo reconhecer a escala gigantesca dessa missão e a impropriedade das abordagens anteriores.

A certa altura, pensava-se que como os países em desenvolvimento têm menos capital disponível do que a maioria dos desenvolvidos, bastava fornecer mais capital para resolver seus problemas. De fato, essa opinião serviu de justificativa parcial para a existência do banco: se o problema era falta de recursos, estava claro que um banco seria parte indispensável da solução.

Nos anos 80, houve uma mudança de projetos para políticas ¿ ajustes estruturais, envolvendo liberalização do comércio, privatização e estabilização macroeconômica (tipicamente centrada nos preços, e não no emprego e na produção.) Mas ficou demonstrado que essas políticas não eram necessárias nem suficientes para o crescimento; os países do Leste da Ásia, que adotaram políticas diferentes, alcançaram um crescimento mais rápido, e foram muito mais bem-sucedidos na redução da pobreza.

Sob a liderança e Wolfensohn, o banco começou a buscar estratégias multifacetadas, moldadas pelo que ele chamou de Quadro de Desenvolvimento Inclusivo. Muitas das vinculações eram óbvias, mas não tinham recebido a atenção necessária. O aumento da produtividade rural ou o melhor acesso aos mercados fariam pouca diferença se faltassem estradas e portos. Em países infestados pela malária, programas de erradicação do mosquito transmissor poderiam impulsionar a produção e até aumentar a eficácia do uso da terra, à medida que hectares até então praticamente inacessíveis tornavam-se habitáveis. O retorno do investimento em educação também poderia ser melhorado se um número maior de pessoas vivesse mais graças a um melhor sistema de saúde.

O banco começou a reconhecer que os países em desenvolvimento se distinguiam dos países mais desenvolvidos não apenas na falta de recursos; havia também um fosso de conhecimento. Isso tinha importância especial porque o mundo caminhava para o que podemos chamar de ¿economia do conhecimento¿. Entre os casos de sucesso estavam a Índia e o Leste da Ásia, que investiram fortemente não só na educação primária mas também na secundária e na superior, e especialmente em tecnologia e ciência. Isso representou uma mudança importante na política do banco com relação à educação, anteriormente concentrada na instrução primária.

A campanha de Wolfensohn contra a corrupção também representou uma importante mudança de mentalidade ¿ da ênfase em diminuir o tamanho do Estado para a ênfase em melhorar o desempenho do Estado. Estados que pecavam por falta, agora se reconhecia, eram um obstáculo ao desenvolvimento não menor do que os estados que pecavam por excesso. O relatório mundial de desenvolvimento preparado pelo banco em 1997 refletia essa nova tentativa de encontrar um papel equilibrado para o Estado, e mostrava uma compreensão das limitações dos mercados e do governo.

Na gestão de Wolfensohn, o banco repetidamente enfrentou os Estados Unidos, cujos governos Clinton e Bush talvez tivessem preferido um presidente mais dócil. Quando o então subsecretário de Tesouro Lawrence Summers tentou alterar o relatório decenal do banco sobre pobreza ¿ para atenuar preocupações sobre insegurança e capacitação e concentrar-se mais intensamente em renda ¿ o banco se impôs. Quando os EUA tentaram suprimir o apelo do banco por um regime de propriedade intelectual mais equilibrado ¿ um regime mais conveniente para os interesses dos países em desenvolvimento ¿ o banco mais uma vez se impôs.

O governo Bush e a União Européia teriam sem dúvida preferido ouvir menos críticas a seus regimes comerciais, de impacto tão negativo nos países em desenvolvimento. Teria sido melhor para Bush que o Banco Mundial aceitasse calado as propostas de cancelamento da dívida dos países mais pobres que representariam o desgaste de seus recursos, e que fariam os países pobres pagarem pelos mais pobres, reduzindo a capacidade do banco de fazer empréstimos. Mas teria sido um erro, e o banco mais uma vez resistiu em defesa dos interesses do mundo em desenvolvimento.

Mudar as relações entre o banco e os países que pediam ajuda não foi uma conquista menor. No passado, o banco era visto como disseminador da ortodoxia neoliberal ¿ abordagem do desenvolvimento cuja credibilidade tinha diminuído quando Wolfensohn chegou, e cujo prestígio declinou ainda mais desde então. Essa ortodoxia geralmente andava de mãos dadas com os interesses nacionais, empresariais e financeiros dos países mais industrializados, ou pelo menos essa era a impressão que se tinha.

Pior ainda, o banco costumava impor inúmeras condições em troca de assistência, atitude que minou processos democráticos e tirou a autonomia para adotar políticas próprias, com isso reduzindo sua eficácia. Quando pesquisas do banco mostraram que a condicionalidade não funcionava, o banco, na gestão de Wolfensohn, deixou-a de lado.

O banco começou a perceber que em muitos assuntos vitais havia legítimas divergências entre economistas com relação ao caminho a seguir. A democracia pressupõe o debate ativo de políticas econômicas, não a supressão do debate, ou a delegação das tomadas de decisões para especialistas, sejam eles nacionais ou estrangeiros. A tentativa feita pelo banco de abrir o debate não foi bem recebida pelo Tesouro dos EUA nem pelo FMI, mas sua influência foi inegável. O Fundo, também, começou a reduzir a condicionalidade, e acabou pondo em dúvida a desejabilidade da liberalização do mercado financeiro, que tivera importância capital em sua agenda.

Gradativamente, o banco acabou sendo visto, em muitos setores, como parceiro na busca conjunta do crescimento e da redução da pobreza, não como um adversário que tentasse promover a agenda econômica ou a ideologia do Ocidente. Wolfensohn falava com convicção ao dizer que queria que o país ficasse na posição de comando, embora nem todos no banco tenham entusiasmo por essa iniciativa sua (e por algumas outras).

James Wolfensohn presidiu o Banco Mundial numa época de grandes mudanças, tumultos e oportunidades, época essa marcada pelo fim da guerra fria, pela transição pós-comunista para a economia de mercado, e pelas crises leste-asiáticas, e, posteriormente, globais.

JOSEPH E. STIGLITZ é economista. © Project Syndicate.