Título: Fusão, disfunção e desfusão
Autor: Roberto DaMatta
Fonte: O Globo, 04/05/2005, Opinião, p. 7

Épreciso falar do Rio de Janeiro, no momento em que surge, na capital e no estado, a consciência e graças a vereadores novos e com escrúpulo, como é o caso de Aspásia Camargo, a quem eu dedico essas reflexões, de que o Rio como cidade e como uma comunidade humana viva, atuante e agenciadora de valores e imagens tem sofrido ¿ sejamos civilizados ¿ de uma neurose de identidade.

Um traumatismo de perda, engendrado pela fusão, cujos efeitos se refletem principalmente numa equação política difícil de sanar. Refiro-me à desproporcionalidade dos problemas cariocas, cujo cume tem sido as consecutivas incapacidades e incompetências administrativas nas áreas da segurança, da saúde, dos transportes e da ecologia, relativamente às demais aflições que também ocorrem nas outras cidades do estado. É lugar-comum descobrir que a cidade do Rio de Janeiro é um tantã nacional e federal. O problema é que ninguém vai aos vetores básicos dessa bem estabelecida e trivial equação.

Como poderia uma cidade que de 1763 até 1960 foi o centro político e administrativo do Brasil; que, de 1889 até 1960, foi capital da República; que, de 1834 até a fusão (em 1975) foi um ¿município neutro¿, qualificado política, burocrática e administrativamente como singular e especial, ser por decreto e graças a complacências políticas, transformada em mera capital estadual?

É preciso ter sido plasmado por uma mentalidade estupidamente onipotente, estatizante, para transformar, sem pensar nas conseqüências culturais, uma capital nacional em capital estadual por meio de uma canetada.

De fato, só os autoritários ingênuos e sem imaginação sociológica, desses que como as máquinas fazem três mil revoluções por minuto, podem supor que é fácil mudar representações sociais e imagens culturais seculares por decreto.

As culturas são coisas vivas. Não saem de discussões eruditas do STF nem das desavenças do Congresso Nacional. Só uma modernidade política artificial e irresponsável pensa que se pode mudar uma estrutura social redesenhando cidades ou fazendo reformas institucionais.

Comecemos, pois, com algumas implicações desse trauma duplo por que passou a cidade do Rio de Janeiro. Primeiro, perdendo a posição de capital federal em 1960, quando viu o corpo diplomático, a política federal, suas repartições públicas repletas de funcionários esvaziarem-se com seus palácios onde se decidiam os destinos do país. Depois quando houve o que Israel Klabin, num artigo magistral publicado no GLOBO (de 29/4), chama de ¿estupro¿ quando, em 1975, a vingança pune a rebeldia eleitoral da cidade, fundindo-a com o Estado do Rio de Janeiro, dando início a fusão, confusão e disfunção em todos os planos.

Curioso que os planejadores do regime militar (não) tenham ponderado sobre o imenso peso cultural da cidade do Rio em relação ao estado que a englobaria, uma desproporção equivalente a matar uma gaivota com um canhão ou a imaginar que se poderia sanear a Baía de Guanabara, poluída pelo descaso comunitário e com conivência ativa e passiva dos governos locais, em quatro anos. Essa desproporcionalidade fundou um aleijão administrativo insanável que veio acentuar as clivagens da cidade, partindo-a, mais do que dividindo-a (como acentuou Zuenir Ventura); ao mesmo tempo que trouxe à tona a nossa proverbial incapacidade de delimitar esferas de responsabilidade entre o que foi por séculos central e federal, o que sempre foi visto como citadino ou municipal; e o que passou a ser estadual.

Essa ambigüidade, pelas quais o cidadão tem pago um preço indizível, desemboca numa perversa dinâmica eleitoral. Com ela, acirra-se no limite do desejado e até mesmo do civilizado, as táticas políticas entre quem detém o poder federal, estadual e municipal. O resultado tem sido uma perversa troca de sinais, com o governador pensando a comunidade estadual a partir da cidade do Rio de Janeiro, repositório de milhões de votos e de mil e uma promessas eleitorais; e com o prefeito ¿ sabedor do valor do Rio e, mais que isso, do Rio como valor ¿- já vestido da fantasia de suas ambições eleitorais, entrando sistematicamente em conflito com os poderes estadual e federal.

Num contexto administrativo em que o lixo autoritário é concreto e abundante, isso leva à segmentação política, à crise de identidade e a um sentimento de perda e de certeza de que todos somos presas e peças inertes de um jogo de poder imoral, incurável e estrutural ¿ realizado às custas da população da cidade e do estado. Os eventos recentes na área da segurança e da saúde não me deixam mentir. Na segurança, a ambigüidade entre o estado e o governo federal suspende todos os juízos e põe de quarentena o bom senso quando a atuação federal no âmbito do estado fica no lero-lero incerto: entre intervenção e colaboração. No meio tempo, vamos sendo todos assaltados. No caso da saúde, abriu-se um grave conflito jurídico-político entre o município e o governo federal exatamente pela herança de um patrimônio que a fusão tocou com a barriga e que tem sido pago com a vergonha das filas revoltantes e bíblicas de doentes em busca de quem lhes alivie o sofrimento. (Tem mais na próxima quarta-feira.) ROBERTO DaMATTA é antropólogo.