Título: O MEU É MEU, O SEU É NOSSO
Autor: Roberto Dias
Fonte: O Globo, 15/04/2005, Opinião, p. 7

Recentemente, a defesa aberta da tese do tratamento da Amazônia como bem público internacional pelo candidato a diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Pascal Lamy, provocou o firme repúdio do governo brasileiro.

Sabe-se que não é de hoje o interesse estrangeiro pela Amazônia. Durante as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX, diversas potências coloniais procuraram estender seu domínio territorial às margens do Rio Amazonas e de alguns de seus principais afluentes. Para além da soberania sobre a região e da possibilidade de explorar o rico negócio da borracha, tal iniciativa permitiria fundamentar de facto a defesa ¿ de jure ¿ da tese da internacionalização do Rio Amazonas, abrindo o acesso ao coração da floresta a navios e ¿interesses¿ de quaisquer nacionalidades. Não sem motivo, ¿a defesa da soberania nacional¿, ¿a estabilidade de nossas fronteiras¿ e ¿a integridade territorial¿ foram conceitos-chave na atuação do barão do Rio Branco e da diplomacia brasileira na gestão das questões territoriais envolvendo, entre outros, o Amapá e o Acre, além de contenciosos com a Guiana inglesa e a holandesa.

A introdução da temática ambiental na agenda internacional a partir dos anos 70 ¿ fruto das legítimas preocupações com os fenômenos ligados ao desmatamento, à desertificação, às mudanças climáticas e ao extermínio de espécies ¿ recolocou a Amazônia no centro do debate internacional. Às vésperas da Conferência Rio-92, discutiam-se abertamente teses como as do ¿dever de ingerência¿ e do meio ambiente como ¿patrimônio comum da Humanidade¿ ¿ na verdade, um rótulo mais apresentável para o conceito de ¿bem público universal¿, abertamente defendido por Pascal Lamy.

Durante a Rio-92, a diplomacia brasileira foi bem-sucedida na defesa da tese de que, embora fosse claro e inequívoco o caráter universal das preocupações ambientais, caberia aos Estados nacionais, em primeiro lugar, e à comunidade internacional, a título subsidiário, zelar pelo manejo sustentável do meio ambiente. A noção de desenvolvimento sustentável, por sua vez, permitira alcançar o ponto de equilíbrio entre o chamado ¿economismo¿ (o crescimento econômico a qualquer preço) e o ¿ecologismo¿ (a proteção ambiental a qualquer preço).

Além disto, o conceito permitia a harmonização das iniciativas internacionais com o respeito à soberania dos Estados, já que a busca da sustentabilidade deveria ser operacionalizada em nível local e tornada viável pela transferência de recursos financeiros e tecnológicos dos países ricos para os países em desenvolvimento.

Reconheceu-se expressamente a soberania dos países sobre seus recursos naturais; um direito dos Estados, cujo dever correspondente seria o do manejo sustentável. Adotou-se o princípio da responsabilidade comum, mas diferenciada, fundamentado no fato de que políticas e modalidades históricas de exploração econômica e padrões de consumo vigentes nos países industrializados teriam contribuído para a maior parte do passivo ambiental da Humanidade. Não é outro o fundamento conceitual do ¿Protocolo de Kioto¿, ao qual, infelizmente, países-chave como os Estados Unidos recusam-se a aderir.

Outra forma perigosa de instrumentalização das preocupações ambientais é a vinculação entre comércio e meio ambiente, também implícita nas declarações de Lamy. Se, por um lado, o regime internacional de proteção à propriedade intelectual silencia quanto à partilha de benefícios entre países desenvolvidos e em desenvolvimento pelo uso da biodiversidade e no que tange à remuneração do ¿conhecimento tradicional¿, por outro lado, protege de forma especialmente zelosa os interesses patentários e a indústria da inovação, a maior parte delas concentrada nos países ricos.

A proteção da propriedade de uns e não de outros, bem como o reconhecimento da forma de conhecimento dominado por uns, em detrimento dos saberes de outros, constituem expressões de ¿dois pesos e duas medidas¿, bem afeitas ao mote do título deste artigo: o meu é meu; o seu é nosso.

Não fossem suficientes essas e outras incoerências, alguns pretendem reconhecer a legitimidade de sanções e restrições comerciais em caso de violação das obrigações internacionais em matéria de meio ambiente, fato que provavelmente abriria espaço a novas manipulações e a excelente justificativa para perpetuar esquemas de proteção de mercado nos países desenvolvidos.

Novamente, trata-se de uma nobre causa servindo a interesses espúrios. A proposta de Lamy, como bem disse nosso ministro das Relações Exteriores, Celso Amorin, é essencialmente preconceituosa e parece reproduzir a visão, infelizmente presente em outros instrumentos internacionais, de que há uma divisão tácita entre países responsáveis e irresponsáveis. Aqueles, os ricos e desenvolvidos, teriam direitos e poderiam exercê-los; já os países em desenvolvimento, se os tivessem, não possuiriam capacidade de fato para tanto...

Há que se rejeitar enfaticamente a posição do senhor Lamy. Fundamentalmente, trata-se da atualização de uma visão intervencionista e ¿civilizatória¿, historicamente presente no discurso e na prática de países ricos em suas relações com o mundo em desenvolvimento. Será esse discurso sutilmente intervencionista distinto daquele abertamente formulado pelos falcões do Pentágono? Seriam as candidaturas Wolfowitz para o Banco Mundial (Bird) e Pascal Lamy para a OMC, de fato, próximas e complementares, traduzindo ambas as visões seletivas e intervencionistas de como ¿congelar¿ a distribuição de riquezas e de poder econômico em nível internacional?

Claro, ¿guardando o que é meu (deles), e socializando o que é nosso¿. Trata-se de uma visão que ajuda muito pouco a causa do desenvolvimento e, menos ainda, a do desenvolvimento sustentável.

ANDRÉ COSTA é deputado federal (PT-RJ).