Título: VERNIZ DEMOCRÁTICO
Autor: Renato Galeno
Fonte: O Globo, 20/03/2005, O Mundo, p. 40

Falcões da Casa Branca festejam reformas no Oriente Médio, mas realidade é mais complexa

Exatamente dois anos depois da invasão do Iraque, os sorrisos dos falcões do primeiro escalão do governo dos Estados Unidos não escondem: a linha-dura americana comemora as reformas democráticas que, segundo ela, estão acontecendo no Oriente Médio. Como exemplos do sucesso da exportação de democracia do presidente Bush, citam as recentes eleições em Afeganistão (que, mesmo na Ásia Central, entra na lista), Iraque e Arábia Saudita, as reformas políticas do Egito e a mobilização popular no Líbano. Mas um estudo mais atento revela uma realidade mais complexa.

Quinta-feira, a secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, deu o tom do ar festivo da Casa Branca:

¿ Vamos construir um outro tipo de Oriente Médio.

Às invasões do Afeganistão e do Iraque após o 11 de Setembro se seguiram pressões sobre alguns regimes, que dizem estar realizando reformas. Mas o real significado destas ações é contestado por especialistas.

¿ Sob a pressão americana, os regimes locais vão conceder mudanças democráticas cosméticas. É ilusão esperar que a Casa de Saud, os Mubarak do Egito, a dinastia hachemita da Jordânia ou qualquer um dos xeques do Golfo arrisque sua própria queda com uma abertura excessiva. Certamente haverá algumas mudanças pequenas e ruidosas e eleições sem significado ¿ disse Michael Izady, historiador da Universidade Pace, em Nova York, que dá aulas sobre cultura árabe para as forças especiais dos EUA.

Há críticas também à aparente tentativa da Casa Branca de fazer parecer existir uma mudança em toda região.

¿ Cada caso deve ser estudado dentro de seus próprios méritos. É tolo atribuir reformas democráticas à guerra do Iraque e à política do governo Bush ¿ afirmou o professor de História Michael Provence, da Universidade da Califórnia, em San Diego. ¿ Washington historicamente comprou o apoio das autoritárias elites dirigentes. Mais democracia necessariamente significaria mais resistência à política americana, não menos.

Mudança eleitoral no Egito é inócua

Muitos dos regimes aliados de Washington não podem ser considerados democráticos nem falam de abertura. Na Jordânia, o rei Abdullah II indica o premier, seu Gabinete e o Senado. Recentemente, proibiu manifestações políticas das associações de classe. Sede da Iniciativa de Parceria no Oriente Médio (agência americana criada para promover a democracia) na região, a Tunísia é comandada pelo presidente Zine al-Abedine Ben Ali desde 1987. A liberdade de expressão é mínima e opositores estão presos. Como a Argélia ¿ país em que a eleição de fundamentalistas islâmicos foi anulada por um golpe militar ¿ , o país é considerado pelos EUA um aliado estratégico na guerra contra o terror.

O caso do Egito é singular. Há 24 anos no poder, o presidente Hosni Mubarak por quatro vezes foi candidato único ao cargo. Mês passado, mudou a lei permitindo concorrentes na eleição de outubro. Porém, na prática, a medida é inócua. Os adversários deverão sair de um dos poucos partidos opositores permitidos. Segundo a Economist Intelligence Unit, respeitado centro de pesquisa britânico, a mudança pode ser uma forma de legitimar a eleição de seu filho, Gamal Mubarak, em 2011. A população do país se opõe fortemente à sucessão hereditária.

Democracia também poderia não ser traduzida em estabilidade. Todos os países árabes do Golfo (à exceção de Omã) são dominados por minorias étnicas ou religiosas que dificilmente continuariam no poder. A Casa Branca, no entanto, parece ter optado por uma quebra da política externa historicamente defendida pelos republicanos, o que teria feito suas ações se aproximarem dos desejos populares mesmo que por interesse próprio.

¿ A mudança no clima político que pode ser observada no Oriente Médio vem de baixo, causada pelas novas tecnologias de informação. As pessoas sabem o que acontece no mundo e entendem quão vis são seus governos. Estão exigindo mudanças, o que cria duas vias de expressão: um apelo para um regime mais aberto ou o fundamentalismo ¿ disse Izady. ¿ Há quem argumente que estamos cortejando o desastre já que as mudanças podem desestabilizar regimes amigos. Os neoconservadores americanos rejeitaram o argumento da estabilidade desde o 11 de Setembro. A estabilidade de regimes amigos cruéis, como Arábia Saudita e Egito, foi o criadouro do descontentamento e do terrorismo.

Mas imaginar uma revolução democrática em toda a região é exagerado. Mesmo analisando apenas mudanças ocorridas após o 11 de Setembro, há casos de endurecimento de regimes.

Em fevereiro de 2002, o emir do Bahrein, Hamad bin Isa al-Khalifa, decretou leis que dão a ele total poder no país. No Kuwait, mulheres não votam e o premier e os cinco principais ministros são da família al-Sabah, do emir. No Marrocos, o rei Mohammed VI apresentou uma lei que diminui o número de partidos e ilegaliza os blocos regionais, o que alijaria a minoria berbere.

Há também reformas em alguns países. No Qatar, um Parlamento está sendo criado (¿apenas¿ um terço dos deputados serão indicados pelo emir) e mulheres terão direito a voto; em Omã, apesar não haver partidos políticos, ano passado foi realizada a primeira eleição geral. Mas, mesmo nestes lugares, é preciso ter cautela.

¿ Estes acontecimentos não devem levar à democracia porque eleições são apenas a camada superficial dos sistemas democráticos. No coração da democracia está a disposição de realizar acordos entre interesses políticos divergentes e de compartilhar e transferir o poder de forma pacífica com o passar do tempo ¿ disse William Bayres, diretor do programa de Relações Internacionais da Universidade de Indianápolis. ¿ Ainda não há indicação de que essas condições prevalecerão em qualquer lugar do Oriente Médio.