Título: Atravessando a fronteira
Autor: Luiz Paulo Horta
Fonte: O Globo, 14/03/2005, Opinião, p. 7

Até o católico Severino abriu a guarda, e assim o projeto da Biossegurança pôde ser aprovado por ampla margem na Câmara, configurando uma vitória da luz sobre as trevas em questões como a das células-tronco embrionárias.

Correto? Seria bom se fosse tão simples. E é quase impossível resistir a uma comissão de doentes pedindo ajuda para os seus problemas. Mas por que deveria um assunto desta gravidade ser decidido apenas com base na emoção? E por que iria uma instituição como a Igreja Católica, com toda a sua experiência histórica, enfileirar-se do lado das sombras?

O que estava em jogo, no caso, não era só o avanço ou o progresso da ciência, mas a eventualidade de se transformar o especificamente humano em material de laboratório, sujeito às necessidades deste ou daquele pesquisador. Dependendo do que sejam essas experiências, você pode atingir no cerne a integridade da pessoa humana.

Segundo a visão religiosa, desde que o óvulo fecundado se transforma em embrião, já existe um ser humano que é sagrado, porque participa da natureza divina ¿ como diz a Bíblia, foi feito ¿à imagem e semelhança de Deus¿. Por isso você não pode sacrificar um embrião em nome desta ou daquela vantagem prática (o que não significa bloquear outras pesquisas, promissoras e legítimas, com as células-tronco).

E eu com isso, dirá o não-religioso? Por que é que esta ou aquela igreja tem o direito de interferir nas discussões da sociedade civil?

Uma ¿sociedade civil¿ como a brasileira formou-se com base numa idéia-força que era o cristianismo. O mesmo para uma sociedade como a francesa, ou a americana. Queremos romper definitivamente com esse passado?

Suponhamos que sim. Pensemos, então, em termos exclusivamente éticos, ou filosóficos. Desde quando, para tratar do que é especificamente humano, o critério científico passa à frente de todos os outros? Por esse caminho ¿ desculpem o radicalismo ¿ vamos acabar justificando experiências como as dos nazistas. Afinal de contas, eles não tinham condenado todos os judeus à morte? Que havia de mal, então, em aproveitá-los, como embriões congelados, para esta ou aquela experiência interessante?

Você dirá que eu sou um bruto por raciocinar assim. Mas o que não percebemos é que, em votações aparentemente racionais e lógicas como a desta última lei, estamos atravessando uma fronteira obscura. Estamos dando aos pesquisadores um imenso poder sobre o ¿material humano¿ sem termos estabelecido uma ética que administre essa interferência.

E então, por que não entregar aos filósofos ou ao pensamento ético o tratamento desses assuntos? A ética e a filosofia são magníficas atividades humanas. Mas elas trabalham apenas com os dados da nossa humanidade prosaica. E, muitas vezes, essas coisas falham. Não têm força para mudar um fato ¿ ou para criar uma civilização.

No tempo do Império Romano, havia ótimos filósofos e pensadores. Um Sêneca, por exemplo. Antes deles, havia toda uma tradição grega que já fundava na razão a dignidade humana. Os imperadores romanos passaram por cima de tudo isso. O poder se impunha ao cidadão comum ¿ e, mais que isso, aos escravos que vinham de todos os cantos do Império. Eles não tinham direito a nada. Por isso prestaram tanta atenção à pregação de um profeta da Galiléia que dizia que o mais insignificante ser humano podia chegar com Ele ao paraíso. Foi assim que começou, para a civilização ocidental, isso que hoje chamamos de ¿direitos humanos¿.

Depois disso, a mensagem cristã foi refinada de todos os modos. Foi até esquecida pelos que utilizaram os seus princípios. Mas mesmo para criar uma cultura laica, como fez a Revolução Francesa, parecia necessário entronizar a Deusa Razão. Sem uma referência ao sagrado, toda elaboração teórica parecia fraca, insuficiente. E assim tem sido até hoje. O marxismo, querendo riscar do mapa o cristianismo, criou a sua própria religião, os seus mitos.

A tradição cristã trabalha com símbolos fortes. O que é o ¿fruto da árvore da ciência do bem e do mal¿ senão o estabelecimento de um limite às ações humanas? ¿Você pode ir até aqui; adiante disso, não vá¿. História parecida é a da torre de Babel ¿ também na linguagem do mito. Os homens quiseram chegar até o céu por suas próprias forças. Só conseguiram criar uma confusão nunca vista.

A ciência é uma glória da espécie humana. Mas ela não pode ser um critério absoluto. Você não precisa brigar com a ciência (erro que, em outros tempos, Roma cometeu). Mas a verdadeira sabedoria estabelece hierarquias. Foi assim que o cristianismo começou: dizendo que a vida humana era sagrada, porque ela participava do mistério criador. E assim se fundou a nossa civilização. Até agora, deste lado do mundo, ainda não apareceu alguém capaz de fazer coisa melhor.