Título: KIRCHNER DEU O MAIOR CALOTE DA HISTÓRIA
Autor: ELIO GASPARI
Fonte: O Globo, 02/03/2005, Opinião, p. 7

Grande Néstor Kirchner. Impôs à banca o maior calote de todo os tempos. Pagará entre 25 e 30 centavos por cada dólar devido aos que acreditaram na paridade do peso argentino com o dólar americano. Foi chamado de maluco, tratado como leproso, mas conseguiu reestruturar algo entre 70% e 80% da dívida. Um êxito, mesmo para os padrões exigidos por seus piores críticos. Uma conta de US$102 bilhões ficará por US$30 bilhões. ¿Economizamos bilhões de dólares do povo¿, anunciou o presidente argentino.

A banca aceitou os 25% porque se deu conta de que era isso ou nada. Com seu estrabismo sartriano, Kirchner não tem medo de cara feia. Usaram-se contra ele recursos de terrorismo financeiro do Fundo Monetário Internacional, da academia bem pensante e das ekipekonômicas de todo o mundo. Kirchner prevaleceu porque a banca não trabalha para provar que está certa. O que ela quer é dinheiro.

Não foi Kirchner quem produziu a moratória de 2001, muito menos os oito anos de ilusão da paridade cambial. Essa irresponsabilidade derrubou um presidente, botou outro para correr e levou Carlos Menem para a porta da cadeia. Jogou metade do país na pobreza e corroeu 25% dos salários dos trabalhadores. Mesmo tendo crescido 11,7% em 2003 e 8% em 2004, a economia argentina ainda não voltou ao patamar em que estava em 1998. A dolarização, festejada pelos sábios da economia internacional, detonou cerca de 20% da economia do país. (Faça-se sempre a homenagem histórica a FFHH e a Pedro Malan. Em 1999, no meio da crise cambial eles foram pressionados pelo diretor do FMI, Michel Camdessus, e pelo seu condestável, Stanley Fischer, para dolarizar a economia brasileira. FFHH rebarbou a oferta. Num lance capaz de ensinar a Lula os bons modos do cargo, o príncipe da privataria não contou essa história à patuléia. Ela veio a público no livro ¿O castigo¿, do jornalista americano Paul Blustein.)

Kirchner mostrou aos seus pares que a política econômica dos países subdesenvolvidos não está condenada seguir o bom pensar do FMI e da banca. O mercado financeiro não busca modalidades de perfeição acadêmica. Está a fim de dinheiro e, precisamente por isso, preferiu embolsar o humilhante caraminguá oferecido por Kirchner a micar no pedestal de seus supostos princípios.

É possível que o presidente argentino faça outra surpresa. A entrada de investimentos estimulada pelo fim da moratória forçará uma valorização do peso, o que comprometerá as exportações. Com juros decentes, recordes de exportações e a bolsa de Buenos Aires rendendo 13% em fevereiro, a Argentina virou um quindim para os investidores internacionais. Por via das dúvidas eles já sabem que Kirchner poderá impor controles de câmbio.

Qualquer comparação entre a política de Kirchner e a de Lula é despropositada, pois faltou à herança recebida pelo companheiro a ruína produzida por Carlos Menem. As situações não se comparam, mas Lula deixou o aliado a pé. Se os argentinos tivessem naufragado haveria mais risos do que lágrimas no Banco Central e no Ministério da Fazenda.

Numa infelicidade que o tempo poderá corrigir, Kirchner e alguns de seus colaboradores estão convencidos de que um pedaço da ekipekonômica brasileira fez o possível para envenenar a renegociação argentina.