Título: A ascensão de Severino e o futuro da política brasileira
Autor:
Fonte: O Globo, 27/02/2005, O País, p. 8

Oconsenso ficou por conta da incompetência do PT e dos erros do governo, que culminaram na eleição do deputado Severino Cavalcanti (PP-PE) para a presidência da Câmara dos Deputados. A partir desse ponto, que passa pela discussão da reforma partidária, cientistas políticos ouvidos pelo GLOBO analisaram de forma diversa o significado da ascensão de Severino e seu grupo para a política nacional.

O cientista político Marcius Coutinho, da UFRJ, diz que a principal herança dessa eleição será uma mudança no relacionamento entre o Legislativo e o Executivo. Para Octaciano Nogueira, da UnB, entretanto, nada será diferente nesse aspecto: ¿As relações são promíscuas e promíscuas vão continuar¿.

José Arthur Gianotti, da USP, diz que a eleição de Severino significa que ¿os interesses dos brasileiros não conseguem se sobrepor aos interesses dos próprios parlamentares¿, e José Luciano Dias, do Ineb, lembra que há imenso espaço político a ser ocupado.

O modo peculiar de se expressar de Severino não escapou a Bolívar Lamounier, do Idesp. César Romero Jacob, da PUC-RJ, diz que há um clima de chacota no ar e aposta num desgaste da imagem do Parlamento. Para Fernando Limongi, da USP, não se deve tirar conseqüências mais profundas da eleição de Severino. Bolívar Lamounier, cientista político, fundador e primeiro diretor-presidente do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (Idesp):¿A eleição do deputado Severino Cavalcanti é um sintoma a mais de um processo que vem ocorrendo há algum tempo no país, de partidos esfarinhados, sem identidade, programa ou consistência. Se o governo não consegue eleger o presidente da Casa num pleito em que ninguém questionou o princípio de que a presidência cabia ao partido de maior bancada, então há uma dificuldade profunda do relacionamento do governo com essas entidades amorfas que são hoje o Congresso e os partidos. É claro que também contribuiu para que isso acontecesse uma incompetência política de proporções impressionantes. A condução pela cúpula do PT foi desastrosa. Sobre a ascensão de Severino, temos um sentido sociológico, de que ele é muito representativo de uma parte do Congresso e de uma parte da sociedade brasileira. Tem o perfil de um político simples, de horizontes limitados, que tem como objetivo operar em seu ambiente imediato dentro de regras que a elite pensante do país não compartilha. Isso é natural, porque o país não é homogêneo.Uma segunda observação é que Severino é uma caixa de Pandora ambulante. Pelo que fala e pelo que é. Os políticos, normalmente, têm uma regra de não precipitar discussões que não estão na pauta do Congresso. Já Severino abre as discussões de maneira imprevisível. Ele vai acelerar o ritmo da discussão e vai retirar do presidente Lula o monopólio da formação da agenda do debate público.E ficou evidente que houve um voto de protesto, porque o governo atropela o Congresso a todo momento, inclusive com edição exagerada de MPs, e interfere na vida interna dos partidos, coisa raríssima no Brasil.¿César Romero Jacob, cientista político, professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ): ¿A ascensão de Severino Cavalcanti representa um erro de muita gente, da elite parlamentar. A começar pelo PT, que não soube encaminhar bem o processo sucessório. E a desobediência dos líderes põe em pauta a necessidade urgente da retomada da reforma política. Mas não se trata mais de quem foi o culpado. A conseqüência é que haverá um desgaste da imagem do Parlamento, como instituição. Isso porque a opinião pública não está em sintonia com Severino e há um clima de chacota no ar. O pior é que ele não se dá conta disso, passa soberbo. Há uma desmoralização no terceiro cargo mais importante do país. A imagem que temos dele é a de um líder corporativo brigando por aumentos de salários. Melhor seria, inclusive, que ele não assumisse posições radicais, como presidente da Câmara, em temas polêmicos, como homossexualismo. Seria o mais sensato, já que ele representa a instituição como um todo, e há divisões de opiniões dentro da instituição. E, pode soar como um paradoxo, mas a eleição foi ruim para o próprio Severino, que agora está sob os holofotes. Antes ele era um líder, com poder, tinha peso, mas ninguém o vigiava. O baixo clero não gosta de holofotes.¿José Arthur Gianotti, professor da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e membro fundador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap): ¿Não acredito, como já me atribuíram, na funesta idéia de que o país está à beira do colapso político. No entanto, parece-me que o jogo político brasileiro bateu em um de seus limites. Numa democracia representativa, os partidos são indispensáveis porque somente eles transformam interesses da sociedade civil em interesses políticos, que serão configurados em políticas públicas.A velha tendência de se desfazerem os perfis dos partidos chegou agora no ápice. Sempre houve a possibilidade de um deputado trocar de partido, mas nunca soube que um mesmo deputado fosse capaz de sair e voltar à sua agremiação em 24 horas, como ocorreu.A eleição de Severino Cavalcanti significa que os interesses dos brasileiros não conseguem se sobrepor aos interesses dos próprios parlamentares. Se quisermos democracia, queremos também políticos profissionais cujos interesses particulares serão moldados pelo próprio jogo político partidário. Se abrirmos a porteira dos interesses corporativos dos políticos e da burocracia em geral, em vez da queda da Bastilha, teremos um mergulho no marais (pântano).O PT incentivou o troca-troca de partidos, contribuindo para o desmantelamento da malha política. Foi um retrocesso e um desserviço ao país, porque destruir o processo político partidário é muito fácil e rápido, mas para reconstrui-lo leva gerações. A reforma partidária está em pauta no país hoje, mas isso não significa que ela virá.¿ José Luciano Dias, cientista político do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos (Ineb): ¿A eleição de Severino vem completar um processo iniciado no ano passado, de perda de controle do governo sobre a agenda da Câmara. O aumento de salário que ele propõe é o prolongamento de uma pressão antiga de uma maioria centrista e conservadora, que pediu o atendimento às emendas ao Orçamento e ao preenchimento de vagas nos ministérios, negados pelo governo. A equação é a mesma: querem poder.A agenda do governo, na verdade, é uma agenda dos governos passados e não se pode imaginar que Severino vá prejudicar seu andamento. Projetos como o que trata das agências reguladoras e as regras de saneamento estão parados há meses e não por culpa de Severino. O deputado ocupa agora posto de poder privilegiado. Vê um imenso espaço político a ser ocupado, diante do vazio do governo, dividido na articulação política. Lula também deixou temas de importância, como violência, aborto, tráfico de drogas e casamento de homossexuais, soltos, ao abraçar-se com a economia. O governo tem pela frente o desafio da gerência política. A reforma ministerial já aumentou seu custo em pelo menos 50%. O PP quer mais ministérios e o PMDB também. É um processo cumulativo.¿ Fernando Limongi, presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e professor do departamento de Ciências Políticas da USP: ¿Não devemos tirar conseqüências mais profundas da eleição de Severino Cavalcanti. É um dado muito específico, não tem esse alcance todo que estão imaginando. É um fato mais limitado, foi apenas a eleição de um presidente da Câmara. Qualquer ilação a mais sobre o tema é um erro metodológico, é algo que não se deve fazer. No máximo, se pode fazer uma analogia ou uma ilustração do que aconteceu. De qualquer forma, foi uma ação desastrada do PT e de sua liderança num evento circunscrito, que era a eleição do presidente da Câmara. A grande questão é como o PT conseguiu perder essa eleição, o foco tem que estar aí. Como conseguiu perder um cargo que era quase garantido? Enxergar um caos político na eleição de Severino é enxergar caos em cada esquina, o que aliás é uma visão típica de nossos analistas, principalmente das elites intelectuais e políticas. Não tem nada disso, tudo continua como antes no quartel de Abrantes.Nessa história, perderam o PT e Lula, mas ninguém sabe ainda quem ganhou. É capaz de ninguém ganhar. E de qualquer forma, a perda é também circunscrita à relação do Executivo e o Legislativo, sem conseqüências imediatas no processo eleitoral. Não ameaça, a meu ver, a reeleição do presidente Lula, a não ser que Severino mude de partido e vá para a oposição.¿Marcius Coutinho, cientista político da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): ¿A principal conseqüência da ascensão política de Severino Cavalcanti será a mudança de relacionamento entre o Executivo e o Legislativo. Os deputados mandaram um recado quando votaram em Severino: o governo precisa escutá-los, precisa mudar sua forma de articulação. Agora o governo vai pagar a conta dessa falta de diálogo, com dificuldades para aprovar seus projetos na Câmara. Outro ponto é a forma como o PT conduziu a escolha do seu candidato, num processo decisório sem consultas e sem participação, deixando evidente o autoritarismo do partido. Mas não me preocupo com esse discurso conservador e, muitas vezes, polêmico de Severino. As posições representam, claro, o que pensa parte da sociedade, os mais conservadores. Mas elas não são rígidas, podem ser revistas. Tudo vai depender do diálogo com o governo.¿Octaciano Nogueira, cientista político da Universidade de Brasília (UnB):¿As relações do Executivo com o Legislativo não vão mudar. São promíscuas e promíscuas vão continuar. Severino e essa massa que se convencionou chamar de baixo clero vive em torno de interesses, e não de idéias, e isso não muda. A única conseqüência prática visível é que vai aumentar o preço do voto. A conflitividade é maior porque há uma multiplicidade de interesses. Cada um defende o seu, aumenta o custo do voto. E o governo alimenta esse toma-lá-dá-cá. Outro ponto é que os líderes perdem o domínio sobre as bancadas. O baixo clero está em todos os partidos e os líderes vão perder sua influência: acertam uma coisa e os liderados fazem outra. Severino lidera interesses conhecidos: benefícios, salários, prerrogativas, subsídios. Mas justiça seja feita, não é só ele. Em toda eleição da Câmara há uma conta a pagar. Aécio Neves e João Paulo aumentaram verbas. Severino é o intérprete de uma prática consagrada. Mas os problemas de articulação política vão se agravar. O PT parece gostar de acender fósforo em mato seco.¿