Título: Bingo!
Autor: Macedo, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/10/2009, Espaço aberto, p. A2

A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que legaliza os bingos. Isso se passar pelos plenários da Casa e do Senado e não for vetado pelo presidente. Espero que sucumba nesse caminho, pois seria um desastre. Em particular, para idosos e/ou aposentados, que têm particular atração por esse tipo de jogo, a ponto de alguns perderem nele parcela significativa de seus rendimentos, ao lado de economias a duras penas acumuladas. Nesses e noutros casos, há os que se entregam à ludopatia, a compulsão pelo jogo.

O que a CCJC aprovou foi um substitutivo a vários projetos sobre bingos apresentado na Comissão de Finanças e Tributação pelo deputado João Dado, de sobrenome adequado ao assunto. Na CCJC sofreu poucas alterações e tem vários pontos vulneráveis. Entre eles, um artigo fixa um número limitado de bingos levando em conta a população de cada município. Por exemplo, um para cada 100 mil habitantes ou fração em municípios com até 500 mil habitantes. Ao mesmo tempo deixa as autorizações de funcionamento por conta do Ministério da Fazenda, nos termos do regulamento da lei. Dado esse limite, seria uma guerra obter essas autorizações e as empresas excluídas poderiam recorrer a juízes em busca de liminares que garantissem seu funcionamento, alegando que a Constituição garante a liberdade de empreender e que haveria o tal "prejuízo iminente" na ausência da autorização. Há, assim, o risco de um "liberou geral". Noutro artigo, exige-se um capital mínimo de R$ 1 milhão, com caução de 20% retida enquanto o estabelecimento funcionasse. Ora, nos "videobingos com sequências ganhadoras", de que fala o texto aprovado - e que, presumo, levariam também a prêmios de grande magnitude -, quem banca o jogo precisa estar bem calçado para pagá-las. Essa caução mínima não me parece suficiente. E mais: os royalties devidos pela exploração dos bingos seriam distribuídos apenas à União (30%) e 70% aos Estados ou ao Distrito Federal (onde se localizarem os estabelecimentos), nada cabendo aos municípios.

Ao levantar esses pontos, faço-o a título de análise, sem significar que caberia melhorar o projeto, pois vejo detestável a ideia permissiva que embute.

Em seu favor há argumentos insustentáveis, como o de que geraria 320 mil empregos. Ora, mesmo que os bingos empregassem esse número de pessoas - talvez na hipótese do "liberou geral" -, caberia pesar também os empregos perdidos com a transferência para os bingos de renda até então gasta em outros ramos de atividade. Assim, o jogo já começaria com um gol contra esses outros ramos. Chute por chute, diria que 320 mil empregos seriam assim destruídos, ao lado do surgimento anual de 50 mil ludopatas e de 90 mil famílias com dificuldades financeiras. Além disso, o índice de Gini, que mede a concentração de renda, aumentaria de 0,55 para 0,58, significando renda mais concentrada, pois no jogo muitos perdem para o ganho de uns poucos apostadores e bancadores.

Argumenta-se também que parte da receita do governo se destinaria a finalidades como esportes, cultura e saúde, o que serve apenas para dourar a pílula desse veneno social, pois se ignoram os males a que poderia levar. Entre eles, conforme matéria neste jornal no dia 17/9, a compulsão pelo jogo pode trazer consequências devastadoras a quem o pratica, como isolamento social, dívidas, noites sem sono e angústia. No Hospital das Clínicas, na capital paulista, há o Ambulatório do Jogo Patológico, cuja procura era maior antes de 2004, quando os bingos estavam em funcionamento, com demora de atendimento que então alcançava quatro meses, e hoje varia entre 15 e 30 dias.

A discussão sobre os bingos deveria ser estendida à questão geral do jogo no País. Sei de oito(!) jogos operados pela Caixa Econômica Federal (Mega-Sena, Lotogol, Timemania, Loteca, Lotofácil, Quina, Dupla Sena e Lotomania) e que há também a Loteria Federal, ao lado de outras estaduais, raspadinhas, e outros jogos. Todos a criar ilusões, concentração de renda, ludopatia e outra patologia, a que envolve milhões de "patos". Como os que preenchem, por exemplo, os boletos da Mega-Sena sem atentar para o fato de que no seu verso está dito que a probabilidade de ganhar marcando seis números é de uma em 50.063.860!

Esses jogos são promovidos até com propaganda enganosa, como a que vi recentemente na TV, a dizer que nas loterias governamentais todos têm a mesma chance. Não é verdade. Quem joga mais tem chances maiores. Na Mega-Sena, por exemplo, pode-se diminuir a probabilidade de perder com apostas mais caras de até dez números.

Não acredito na eficaz proibição de jogos de azar, pois mesmo na sua atual ilegalidade há gente que procura o bingo e outros jogos clandestinos. Mas há formas bem menos inconvenientes de permitir o jogo. Uma é a do jogo confinado, como em Las Vegas e Atlantic City, nos EUA. São cidades mencionadas num relatório parlamentar sobre os bingos, o qual, contudo, não aprendeu as lições que esses casos ensejam. Eles tornam o hábito mais difícil para quem joga e para quem é mais pobre, pois há o custo da viagem e estadia. E facilitam o controle pelo governo, pois sem confinamento há mais espaço para corromper os agentes públicos encarregados desse trabalho. Isso não é considerado pelo projeto de lei, que dá a entender que seria possível estabelecer controles eletrônicos infalíveis mesmo com a disseminação dele por todo o território nacional.

O brado que intitula este artigo vem de quem preenche primeiro uma cartela de rodada de bingo, interrompendo o sorteio dos números ao se anunciar como vencedor. Se o projeto virar lei, o grito virá dos que bancarão o jogo, os únicos e grandes vencedores de uma história que se revelará trágica.

Roberto Macedo, economista (USP e Harvard), professor associado à Faap, é vice-presidente da Associação Comercial de São Paulo