Título: Bola murcha
Autor: Abreu, Marcelo de Paiva
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/08/2008, Economia, p. B2

As últimas semanas foram marcadas por más notícias para a política externa brasileira. Os limites da política "altiva" foram cruelmente explicitados. Pode-se imaginar o descontentamento no Itamaraty com o impacto sobre sua reputação de excelência construída ao longo de décadas. As deficiências estratégicas da política externa são visíveis até para o público entusiasmado com a retórica na diplomacia. Nem mesmo o mais chapa-branca dos colunistas conseguiu salvar a face do Ministério de forma convincente.

Durante quase seis anos, a estratégia da política externa brasileira repousou na aproximação Sul-Sul, em meio a exacerbado ranço antinorte-americano. Um dos pilares dessa estratégia seria a aproximação com os países sul-americanos até então excluídos do Mercosul. O outro pilar estratégico seria a intensificação das relações bilaterais com as economias em desenvolvimento. No caso das grandes economias emergentes, especialmente China e Índia, também no plano multilateral, por meio da coalizão do G-20 na Organização Mundial do Comércio (OMC). O terceiro pilar, de longe o mais meritório, e sintonizado com os interesses econômicos concretos do Brasil, seria a ação na OMC, incluindo a Rodada Doha e a solução de controvérsias. Os objetivos concretos a alcançar seriam: a ampliação do Mercosul, como contrapeso à proliferação de acordos bilaterais dos Estados Unidos na região; a reforma do Conselho de Segurança da ONU com assento permanente para o Brasil; a conclusão de Doha e a implementação das decisões relativas aos panels agrícolas.

Todos esses aspectos foram afetados desfavoravelmente pelo recente fracasso das negociações em Genebra e seus desdobramentos. A sucessão de infortúnios foi iniciada antes mesmo do começo da reunião ministerial, com a gafe do ministro Celso Amorim ao criticar a atitude dos países desenvolvidos, citando o dr. Joseph Goebbels, ministro da Propaganda na Alemanha nazista, sobre o uso da repetição como técnica de persuasão. É claro que o ministro estava certo na substância. O próprio Itamaraty tem longa tradição na arte de transformar derrotas memoráveis em vitórias retumbantes pela saturação dos meios de comunicação. O problema é que a boutade ensejou a reação pretensamente ofendida dos negociadores dos países desenvolvidos, com direito a referências ao holocausto. O que poderia ser um ponto a favor antes da partida se tornou um ônus a exigir desculpas.

As negociações em Genebra se concentraram, inicialmente, no equilíbrio entre concessões relativas a produtos agrícolas por parte das economias desenvolvidas e concessões relacionadas a bens industriais por parte dos países emergentes. Acabaram por desembocar em cabo-de-guerra entre os Estados Unidos e os grandes países emergentes importadores agrícolas, especialmente a Índia. Os Estados Unidos resistiram a ir além de um teto máximo de US$ 14,5 bilhões para seus subsídios agrícolas. A Índia insistiu na importância de mecanismo de salvaguardas especiais (SSM, na sigla em inglês) para a agricultura que permitisse tarifas maiores do que as consolidadas (níveis máximos acordados multilateralmente) quando os volumes importados excedessem em 10% a média do triênio anterior. As negociações naufragaram diante desse impasse, antes que temas como subsídios ao algodão e cláusula da paz fossem abordados ou resolvidos.

Quando os Estados Unidos - após oferta inicial de teto nos subsídios de US$ 15 bilhões - ofereceram redução de US$ 500 milhões, o Brasil, que não havia concordado com a Índia sobre SSM no G-20, aceitou a proposta. Na Argentina, falou-se em traição, pois teria sido aceita excessiva redução de tarifas industriais. O negociador indiano saiu da reunião declarando que representava mais de cem países, citando o G-33, e não o G-20. O economista indiano Jagdish Bhagwati, radicado nos Estados Unidos, falou em traição reincidente do Brasil nas negociações multilaterais, minimizando os tradicionais excessos protecionistas indianos. As limitações do G-20, já detectadas por alguns desde 2003, ficaram claras. A diplomacia brasileira confundiu aliança tática contra os subsídios agrícolas dos desenvolvidos com aliança estratégica baseada em convergência de objetivos de liberalização agrícola, que não tinha condições de vicejar.

Em meio ao rescaldo do fracasso, após a volta ao Brasil, a veia histriônica do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, voltou a se manifestar. Ao comentar as possibilidades de ressuscitar a Rodada Doha, o chanceler teceu considerações sobre o temor de que viesse a ser necessário evento semelhante ao ataque terrorista ao World Trade Center em 2001 como incentivo à retomada de negociações...

Para coroar, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi à Argentina com uma comitiva de centenas de empresários para, inclusive, tentar remendar os arrufos genebrinos e encontrou... Hugo Chávez. Nem no âmago do Mercosul a diplomacia brasileira tem condições de operar sem interferências indesejáveis.

Passadas três semanas funestas, a diplomacia brasileira enfrenta desgaste sério em todas as frentes. A acertada concentração de esforços na OMC foi vitimada por impasse difícil de contornar. No processo de negociação, o Brasil viu o G-20 explodir, os demais países em desenvolvimento se alinharem à Índia e a Argentina ficar insatisfeita. Não vai ser suficiente o presidente Lula insistir em dizer que Doha está viva. É necessária profunda reavaliação da política externa que inclua o pleito do Conselho de Segurança da ONU, o reexame do G-20 como coalizão permanente e a redefinição das relações com a Argentina.

*Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-RJ