Título: Um acordo é crucial para a OMC não morrer
Autor: Marin, Denise Chrispim
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/07/2008, Economia, p. B10

Embaixador critica a estratégia brasileira de se aliar a países como Índia e China nas negociações em torno da Rodada Doha

Um acordo modesto da Rodada Doha evitará que uma onda protecionista provoque retrocessos nas práticas do comércio internacional, avalia o embaixador José Botafogo Gonçalves, presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). O experiente negociador criticou duramente a estratégia do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, para a Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC). Para ele, a posição brasileira está montada sob a premissa de uma disputa entre Norte-Sul que já não se reflete na balança comercial. ¿Foi um equívoco achar que o G-20 seria uma solução permanente. Aí está a nossa fraqueza nas negociações¿, afirmou Botafogo. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Por que um acordo modesto, que não trará impacto efetivo sobre o comércio mundial, será melhor que nenhum acordo?

Os EUA e a Europa estão em crise econômica. Não há liderança forte nem nos EUA, nem na Europa, nem na Ásia. A China é uma liderança intramuros, ainda sem capacidade de orquestrar uma ação internacional. Em um mundo em crise, noções de liberdade de comércio perdem todo o seu atrativo. O Congresso americano e a União Européia estão com medo e querem se defender. Ninguém quer correr o risco de ser o único a apostar na liberalização comercial.

O senhor acredita que, mesmo modesto, esse acordo poderá impor regras mais restritas e severas para a concessão de subsídios agrícolas pelos países desenvolvidos?

Não. O acordo apenas impedirá a deterioração do sistema multilateral de comércio. Os subsídios da Política Agrícola Comum (PAC) vão ser reduzidos em razão da expansão da União Européia e de sua capacidade de obter consenso entre seus 27 membros. Não há possibilidade de grandes e rápidas mudanças na PAC. Em um contexto de crise econômica mundial, os argumentos em favor da segurança alimentar ganham força. A essa situação, somam-se os temores em relação aos biocombustíveis, pelo seu risco de substituição de parte da produção de alimentos, e a ausência de um quadro mais claro sobre a oferta de energia barata e mais eficiente. O resultado que é ninguém quer assumir compromissos de mudança das regras do jogo.

O Brasil deixou de dar a prioridade devida aos objetivos do agronegócio nos movimentos mais recentes da Rodada Doha?

Há alguma razão nessa tese. Eu não creio que o governo e o setor privado tenham noção clara do interesse nacional de médio e de longo prazos. Eles continuam centrados na eliminação das barreiras da UE. Se os europeus acabarem com os subsídios e reduzirem tarifas de importação para a agricultura, o máximo que o setor exportador brasileiro poderá conseguir é um ganho de US$ 5 bilhões. Isso é muito pouco em relação às nossas exportações anuais de US$ 160 bilhões.

Na Rodada, não teria sido mais interessante atacar as posições protecionistas dos países com maior capacidade de expansão do consumo, que são as economias em desenvolvimento da Ásia?

Isso, sim, seria importante. Ficamos concentrados na discussão do protecionismo europeu quando o que interessa é o mercado agrícola asiático, especialmente da Índia e da China.

Se os mercados da Índia, da China e do Sudeste asiático são os mais atrativos, foi um equívoco torná-los aliados do Brasil no G-20, onde tentou-se traçar um denominador comum de demandas e ofertas em agricultura? Deveriam ter sido nossos adversários, na área agrícola?

Exatamente. O diagnóstico reiterado pelo presidente Lula, de que há um embate entre ricos e pobres na OMC, está equivocado. Na mesa de negociações e para os interesses do setor empresarial brasileiro, a diferença não existe mais. Os nossos adversários não são mais os países desenvolvidos, mas os países em desenvolvimento.

Há um componente ideológico na atual estratégia negociadora?

Minha geração aprendeu que havia uma relação perversa de trocas entre os países ricos, que exportam manufaturas aos países mais pobres, que só teriam capacidade de vender produtos de baixo valor. Esse conceito ainda está presente no Itamaraty. Mas a balança comercial Brasil-EUA mostra que há pouca participação de commodities. O Brasil exporta produtos manufaturas aos EUA e importa manufaturas de lá. É no comércio com a China que a relação perversa aparece. Temos uma relação de comércio imperialista com a China, não com os EUA.