Título: A Argentina no mau caminho
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/04/2008, Notas e Informações, p. A3

A renúncia do ministro da Economia, Martín Lousteau, é mais uma notícia ruim para quem se preocupa com a estabilidade financeira e econômica da Argentina. É mais um dado inquietante, portanto, para quem se interessa pela superação dos impasses do Mercosul e pela revitalização do bloco. A primeira baixa na equipe da presidente Cristina Kirchner, depois de apenas quatro meses de gestão, torna mais evidente a recusa do governo de enfrentar com realismo a inflação e criar condições para o crescimento equilibrado. O afastamento de Lousteau e a suspensão das vendas de trigo ao Brasil, apesar dos compromissos de integração comercial, são conseqüências da mesma crise, desencadeada pelas opções políticas e administrativas da nova presidente e de seu marido e antecessor, Néstor Kirchner.

O afastamento de Lousteau era dado como certo duas semanas antes de sua renúncia, apresentada na quinta-feira à noite. Sua decisão foi anunciada logo depois do primeiro discurso do ex-presidente Néstor Kirchner como novo chefe do Partido Justicialista. Nesse pronunciamento, Kirchner rejeitou, sem mencionar nomes, a proposta de um esfriamento da economia. ¿Aqui ninguém vai interromper o crescimento do país¿, disse Kirchner. A proposta havia sido apresentada pelo ministro da Economia, na semana anterior, como parte de uma estratégia antiinflacionária.

A política de ajuste incluiria, entre outras medidas, a redução do gasto público e o corte de subsídios concedidos pelo governo central. Seria uma opção pelo realismo fiscal, especialmente recomendável, no caso argentino, diante da frouxidão da política monetária e da preferência pelo câmbio depreciado.

Mas prevaleceu a orientação populista definida pelo ex-presidente e integralmente convalidada por sua mulher e sucessora no gabinete presidencial da Casa Rosada. A política de crescimento será mantida, segundo tudo indica, sem maior preocupação com os fundamentos da economia. O índice oficial de preços continuará a mostrar a inflação conveniente para os interesses políticos do governo. Martín Lousteau tentou interferir na elaboração do índice, mas não conseguiu. O indicador oficial continua mostrando uma alta de preços em torno de 8%. O governo projeta para 2008 uma taxa inferior a 10%. Consultorias independentes calcularam para 2007 uma inflação na faixa de 22% a 25% e estimam para este ano um resultado em torno de 30%.

As distorções vêm-se acumulando há alguns anos. O presidente Néstor Kirchner preferiu deixar de lado os instrumentos próprios para o controle da inflação, como as políticas fiscal e monetária, e recorreu a tentativas de ¿acordos de cavalheiros¿ com o setor privado - na prática, pressões para tabelamento de preços. Os resultados foram os de sempre. Faltaram produtos nas grandes lojas varejistas, mais facilmente controláveis pelos fiscais, e os consumidores tiveram de recorrer ao pequeno comércio, pagando preços mais altos para obter as mercadorias.

A alta das cotações das commodities no mercado internacional agravou os problemas. A tributação de exportações deixou de ser apenas um expediente fiscal, destinado a aumentar a receita do Tesouro, e converteu-se num instrumento de contenção da alta de preços. Os produtores agropecuários, impedidos de aproveitar as oportunidades abertas no mercado internacional, decidiram apelar para o locaute, bloqueando estradas e cortando o abastecimento das cidades.

Martín Lousteau foi mantido fora das negociações com os produtores. Suas divergências em relação à política de controle de preços eram conhecidas e tornaram-se indisfarçáveis depois de um incidente no começo de abril, quando câmeras de televisão captaram uma discussão entre ele e o secretário de Comércio Interior, Guillermo Moreno. Ambos estavam num palco e acompanhavam a presidente Cristina Kirchner.

Moreno é figura de confiança de Néstor Kirchner, assim como o economista Carlos Fernández, guindado da chefia da Receita para o cargo de ministro na sexta-feira. A reafirmação do padrão Kirchner de governo poderá manter o crescimento econômico por algum tempo, mas levará ao agravamento de uma inflação já muito elevada. Ao avançar nesse caminho, a Argentina tornará cada vez mais distante a convergência macroeconômica dos sócios do Mercosul e mais difícil a consolidação do bloco.

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